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Escravos do Jogo

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São raros os autores brasileiros que se atrevem a escrever romances na literatura esportiva. Felizmente, o jornalista Marlos Bittencourt, logo em seu livro de estreia, deixou de lado a “zona de conforto” a que todo repórter está acostumado em sua rotina de trabalho diário e escreveu “Escravos do Jogo” (Editora Multifoco, selo Desfecho). Um romance que mistura ficção e realidade. Uma obra importante para estimular outros autores a produzir gêneros diferenciados para a literatura esportiva.

E Marlos parece ter se saído bem. Escravos do Jogo foi medalha de bronze no III Prêmio João Saldanha de Jornalismo Esportivo (2013), categoria literatura, concedido pela Associação de Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro (Acerj), com o apoio do Governo do Estado do Rio.

Literatura na Arquibancada destaca abaixo o texto de quarta capa da obra, assinado pelo jornalista de O Globo, Pedro Motta Gueiros e ainda o primeiro capítulo completo da obra, gentilmente cedido pelo autor.
Obs: as fotos utilizadas nas ilustrações deste post não fazem parte da obra.

4ª capa de Escravos do Jogo
Por Pedro Motta Gueiros, jornalista de O Globo

Desmascarar um dirigente que se alimenta de dinheiro, frango frito e conhaque vagabundo é a pauta mais indigesta para um jornalista que só cede aos encantos femininos. Por meio da arrogância do cartola, que fala alto, sempre com boca cheia de comida e poder, Escravos do Jogo mostra sem pudor as entranhas do futebol e do ser humano.

Em seu primeiro livro, Marlos Bittencourt sai do distanciamento crítico que marca sua carreira como repórter para entrar na intimidade das relações muitas vezes promíscuas entre homens, mulheres e instituições.

Entre Copacabana, Nova York e o Alto da Boa Vista, o romance de ação vai dos salões da burguesia aos inferninhos para mostrar que subir na vida nem sempre significa estar mais perto do céu. Ao contrário dos espaços percorridos pelo autor, a trama tem lugar indeterminado no tempo cronológico.

Cabe nos porões da ditadura ou na era em que o futebol se torna o braço forte da indústria que vende ilusão e lava dinheiro. Levados pelo talento incansável do jornalista e pela ficção que se confunde com a realidade, leitores e personagens se tornam todos escravos do jogo.

Capítulo 1
Por Marlos Bittencourt

- O que é, porra? – perguntou Bicalho Pereira de forma arrogante para um dos seus funcionários que batia com todo cuidado na porta.

Bicalho Pereira, presidente da Associação do Futebol Nacional, a AFN, estava reunido com o secretário-geral da entidade, coronel Trota, e com o presidente do Boqueirão Football Club, Xavier Camello, em seu gabinete, na sede da entidade, em Copacabana, quando foi interrompido por Virgulino Padilha, um dos seus secretários. O presidente discutia com coronel Trota e com Xavier Camello como fazer para faturar uma nota preta com a venda de jogadores para Europa. Era um negócio de valor elevado, pois se tratava de uma possível negociação do craque Fumanchu, camisa 10 do Boqueirão. Bicalho, Trota e Camello queriam vendê-lo, mas o jogador era pouco conhecido no Velho Continente. Fumanchu, famoso no Brasil, jogava bem, mas nunca havia sido convocado pelo técnico da Seleção, Juca Cegonha, para defender o país.

Havia um boato no qual Fumanchu, um negão bom de bola, andava enrabichado com Cininha, mulher de Juca Cegonha, que tinha sido técnico do Boqueirão. Ela era uma bela morena, ex-empregada doméstica, 27 anos, de fala macia, cabelo negro até os ombros e seios fartos. Usava vestidos com decotes insinuantes e despertava paixões arrebatadoras. Juca, um gorducho muito rico, tinha um ciúme doentio de sua mulher. E o boato envolvendo Fumanchu e Cininha deixava Juca possesso. Este seria o motivo para não convocá-lo. Mas a história jamais havia sido confirmada. Boato ou não, especulação ou não, o fato era que Juca não convocava o craque do Boqueirão, apesar do clamor popular. Poderia ser bem simples convocá-lo: bastava Bicalho Pereira, presidente da AFN, demiti-lo e chamar outro técnico para comandar a Seleção.

Mas Bicalho Pereira não podia simplesmente mandar Juca embora e contratar outro para o cargo. O técnico, ex-sócio do cartola num ferro velho em Acari, Zona Norte da cidade, sabia bem como Bicalho enriquecera. Além disso, havia um segredo guardado por Juca a sete chaves que intimidava o presidente da AFN. Bicalho estava numa sinuca de bico. Pressionado por milhões de torcedores e pela imprensa, nada podia fazer para Fumanchu ser convocado. E o Torneio Internacional de Futebol se aproximava. A convocação de Fumanchu para a Seleção poderia torná-lo conhecido na Europa. A venda do craque seria um negócio milionário para Xavier Camello e para Bicalho. Eles pensavam, tramavam, sonhavam com a venda do jogador, mas não sabiam como convencer Juca Cegonha a convocá-lo. Na cabeça do treinador martelava uma única história: Cininha dormia com Fumanchu.

A reunião que discutia a venda de Fumanchu, e que já durava horas, foi interrompida por Virgulino Padilha. Bicalho Pereira era parente distante de um cangaceiro. Fumando um charuto fedorento, repousou sobre a mesa um copo de conhaque barato, sua predileta bebida. Muito irritado, levantou-se para abrir a porta.

- O que você quer, infeliz? Não está vendo que estou muito ocupado?

Gaguejando e amedrontado com a irritação do chefe, Virgilino Padilha anunciou que o jornalista Chico Manfrini, do jornal O Corneteiro, estava ali, na sede da AFN, para entrevistá-lo. Chico Manfrini queria fazer uma reportagem sobre as finanças da entidade, que não andavam bem das pernas, mas os seus dirigentes ostentavam muita riqueza. Bicalho Pereira perdeu a paciência e disse que não daria entrevista para O Corneteiro, um temido jornal carioca dirigido por comunistas.

- Mande aquele “vermelho” filho da puta para a puta que o pariu. E volte aqui imediatamente depois que aquele corno for embora – esbravejou Bicalho Pereira.

Virgulino Padilha, depois da bronca do chefe, deu meia-volta e foi ao encontro de Chico Manfrini numa outra sala. O secretário, suando muito por causa do passa-fora, avisou ao jornalista que o presidente estava ocupado, que não poderia recebê-lo naquele momento. Mas em outra oportunidade ele o atenderia. O jornalista não acreditou na desculpa que ouviu de Padilha. Chico Manfrini, desconfiado, foi embora. Ao começar a descer os degraus do pequeno prédio de três andares, avisou a Padilha.

- Diga a Bicalho Pereira que voltarei outro dia.

Padilha ficou paralisado na porta da sala da AFN ouvindo os passos de Chico Manfrini descendo a escada. Quando parou de ouvir o som das pegadas do jornalista, deu um pinote para encontrar o chefe. A porta que separava Padilha do gabinete de Bicalho, onde também estavam coronel Trota e Xavier Camello ficou entreaberta. Padilha, em voz baixa, chamou Bicalho Pereira, que, entre baforadas de charuto, sorvia goles de conhaque. As fisionomias de Bicalho, de Trota e de Camello estavam apreensivas, ávidos por saber o que Chico Manfrini queria de fato. Bicalho olhou para cada um deles na sala e arguiu Padilha.

- E então, o que aquele traste da imprensa queria comigo?
- Apenas uma entrevista, doutor – respondeu Padilha, assustado.
- Entrevista sobre o que, porra? – devolveu Bicalho.
- Sobre as finanças da AFN, acho eu. E disse que voltará – emendou Padilha.
- Finanças?! Aquele filho da puta quer me infernizar a vida. Conheço bem esse tipo. Se voltar aqui, vou expulsá-lo a tiros. Trota, temos de ter muito cuidado com esses comunistas do Corneteiro – afirmou Bicalho ao coronel, servindo mais uma dose de conhaque e mostrando um revólver calibre 38, que estava na sua cintura.
- Cuidado, eu? Quem precisa ter cuidado é aquele jornalistazinho de merda, que vem até aqui nos ameaçar. Ele que não brinque comigo, pois sou um coronel do Exército – ameaçou Trota, militar reformado.

O trio formado por Bicalho, coronel Trota e Xavier Camello continuou discutindo uma forma de convencer Juca Cegonha a convocar Fumanchu. Eles queriam pôr o camisa 10 na Seleção para despertar a atenção de algum cartola europeu. O jogador do Boqueirão era realmente um craque e ninguém entendia como ele poderia estar fora da equipe nacional. Este assunto era um mistério, ninguém sabia o motivo. Apenas Juca Cegonha tinha as suas razões, verdadeiras ou falsas, para não convocá-lo. Mas Bicalho Pereira não iria desistir tão facilmente. E disse ao coronel Trota e a Camello que marcaria um encontro com o treinador da Seleção no Le Magnifique, um conhecido restaurante na orla de Copacabana, para convencê-lo a mudar de ideia. Vender Fumanchu era uma questão de honra – principalmente de dinheiro – para Bicalho, Trota e Camello.

Era noite de sábado e chovia fino. Na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, esquina com Rua Paula Freitas, Chico Manfrini, após deixar a sede da AFN, fez sinal para um táxi que o levou diretamente para a redação de O Corneteiro, na Rua da Passagem, em Botafogo. O motorista, um fanático tricolor, perguntou ao jornalista quem ele achava que venceria a decisão do Campeonato Carioca, que seria disputada no dia seguinte, no Maracanã, entre Fluminense e Flamengo. Chico Manfrini era torcedor do América, mas tentou agradar ao taxista para ganhar um desconto, dizendo que apostaria no Fluminense. Chegando à sede do Corneteiro, o motorista parou o carro e olhou para o taxímetro.

- Senhor, são 16 mangos. 

Chico Manfrini mexeu na carteira, na qual tinha apenas um velho talão de cheques, uma nota de dez e duas de cinco. Ele não queria trocar todo o dinheiro e perguntou ao motorista se 15 pratas pagariam a corrida. Como o jornalista garantiu que o Fluminense derrotaria o Flamengo na decisão, o taxista tricolor aceitou. Chico Manfrini desceu do táxi, subiu a escadaria da redação do Corneteiro e largou a bolsa sobre a mesa. O jornalista foi para a sala do editor-chefe do jornal, Antonio Girón, para lhe contar de onde acabava de chegar. Girón era um velho jornalista uruguaio, muito experiente, que morava há tempos no Brasil. E ouviu por cinco minutos a história de Chico Manfrini. Antonio Girón, então, chamou o jovem colega “para tomar umas e outras” no boteco ao lado da redação.

- Vamos continuar o papo acompanhado de uma cerveja – intimou o editor-chefe.
- Agora mesmo – concordou Chico Manfrini.

Ambos desceram até o boteco do Serafim, pediram uma cerveja, uma porção de queijo prato cortado em cubos e um vidro de molho inglês. Antonio Girón quis os copos que estavam na geladeira. O papo entre os dois jornalistas começou com o assunto sobre a entrevista de Bicalho Pereira, que não aconteceu. Chico Manfrini estava aborrecido por não ter conseguido entrevistar o presidente da AFN. O editor-chefe disse para o colega não se desesperar porque ele teria tempo para fazer a reportagem sobre as finanças da entidade de futebol. Chico Manfrini contou para Antonio Girón que uma fonte lhe informou que a AFN era uma lavanderia de dinheiro nas transações feitas por dirigentes de clubes, sempre em conluio com Bicalho Pereira. Chico Manfrini disse ainda a Girón que os negócios eram feitos da seguinte forma: traficantes internacionais ligados a clubes europeus faziam negócios com cartolas brasileiros. Eles pegavam o dinheiro sujo do tráfico, despejavam nos clubes e ganhavam em troca os direitos econômicos dos jogadores. Todas as transações eram intermediadas pela cúpula da AFN, que ganhava cerca de 20% sobre as negociatas. Antonio Girón espantou-se com a história, e deu carta branca para Chico Manfrini agir. Mas o editor-chefe pediu cautela ao colega.

- Chico, isso é coisa muito séria. É preciso ter cuidado porque estes sujeitos não são simples cartolas de futebol. São traficantes e estão envolvidos num esquema perigoso. A polícia está no caso?

Chico Manfrini, mentindo, fez sinal de negativo com a cabeça em relação à polícia. Ele disse a Girón que a sua investigação ainda estava muito no início e avisaria às autoridades quando fosse necessário. O jornalista disse ao chefe que tomaria todos os cuidados possíveis porque Bicalho Pereira era um sujeito perigoso. Depois de mais uma cerveja, haviam bebido oito garrafas, Antonio Girón se despediu do colega, dizendo que precisava ir para casa, já que a sua mulher o esperava para jantar.

Chico Manfrini sentiu-se “órfão” no momento em que o chefe lhe disse que precisava ir embora. Chico morava em Copacabana, num apartamento de um quarto na Rua República do Peru, coincidentemente próximo à sede da AFN. Mas Bicalho Pereira nem desconfiava que o jornalista era um quase vizinho. Chico não tinha dinheiro em espécie e pediu a Serafim, dono do boteco, para trocar um cheque na hora de pagar a conta. Conhecido no bar, o jornalista foi atendido. Na Rua da Passagem, em frente à redação do Corneteiro, Chico tomou um táxi e rumou para Copacabana com a intenção de tomar mais uma cerveja no bar Herfonso, onde batia cartão quase todas as noites. O jornalista não queria ir para casa sem tomar a saideira. Pediu um chope, um maço de cigarros e uma caixa de fósforos. Sentado próximo ao balcão, Chico bebeu a tulipa em dois goles e pediu outro chope com dois dedos de espuma. O jornalista bebia e arquitetava como desmantelar o esquema de Bicalho Pereira, que enriquecera de forma ilícita desde a época em que era dono de ferro velho.

Chico Manfrini tinha 25 anos. Era determinado no que fazia e parecia um daqueles românticos veteranos na profissão. Chico tinha muitas fontes, era bem relacionado com políticos, policiais, procuradores da República, dirigentes de futebol. E não tinha rabo preso com eles. Não deixava de publicar qualquer reportagem somente porque alguma fonte sua pudesse estar envolvida em alguma falcatrua. O jornalista era considerado um “fuçador” pelos colegas de redação. Não deixava pedra sobre pedra quando se debruçava sobre um determinado assunto que poderia virar notícia. Apesar da pouca idade, ele começou na profissão aos 16 anos e aprendera como trabalhar bem. Chico gostava de se relacionar com os jornalistas mais experientes para extrair algo deles, e aprendeu muito com o velho repórter Juvêncio Portela, de 71 anos, ganhador de vários prêmios. O veterano mentor de Chico Manfrini passou pelas principais redações do país, foi correspondente na Europa e na África, onde cobriu as guerras de independência em Angola e no Moçambique. Chico Manfrini tinha verdadeira adoração pelo velho Portela, a quem chamava de Jupo.

Repórter do Corneteiro, Chico Manfrini passava mais tempo na redação do jornal ou na rua do que no seu apartamento em Copacabana. Solteiro, sem filhos, podia fazer o que bem entendesse, pois não tinha de dar satisfação a ninguém. Chico era um boêmio, lia muito, era boa pinta e ainda tinha sorte com as mulheres. Os colegas o invejavam: atacava as novinhas e as balzaquianas. Quase sempre ganhava as mulheres e nunca pagava motel. Quando não ia para o seu apartamento, Chico Manfrini era convidado para passar a noite na casa delas. E ele mesmo dizia que, ao conquistar uma mulher, a transa não passaria da primeira noite.

Ele batia ponto no bar do Herfonso, próximo a sua casa, para encontrar alguns poucos amigos e papear. Naquela noite, Chico não foi para o balcão como de hábito. Preferiu uma mesa. Pediu um chope e uma porção de azeitonas. Uma hora depois, olhando para o seu relógio Patek Philippe, que ganhara de uma antiga namorada, aguardava algum amigo para conversar. Os ponteiros se adiantavam e ninguém aparecia até que uma mulher, de cerca de 35 anos, sentou próxima a ele. Chico Manfrini pareceu meio desconcertado com a beleza da ruiva, cabelo bem fino e cacheado até os ombros, pele branca, algumas sardas no lindo rosto e olhos amendoados. Àquela altura, o jornalista passou a torcer para que os amigos não aparecessem mais. Ele tinha um alvo: a vizinha de mesa.

Chico Manfrini percebeu que a bela ruiva olhava-o discretamente. Ela pediu uísque ao garçom, e sacou da bolsa uma carteira de cigarros. A mulher ficou com um cigarro entre os dedos, mas não o acendeu. A ruiva olhava em volta para ver se alguém fumava. Chico Manfrini, para agradá-la, se ofereceu para acender o cigarro, tirando da surrada jaqueta jeans uma caixa de fósforos. A mulher olhou meio espantada porque não esperava ver um fósforo a sua frente. Mas Chico não perdeu tempo, riscou o palito e acendeu o cigarro da moça. No mesmo fósforo acendeu o seu e, em seguida, voltou para o seu lugar. Sem perguntar o nome da mulher, Chico puxou conversa. Ela emendou o papo e quis saber o que Chico fazia sozinho num bar sábado à noite.

- Paquerando, né? – perguntou a ruiva.

Chico Manfrini tentou esconder a sua verdadeira intenção, dizendo à mulher que aguardava alguns amigos. O jornalista, então, perguntou o nome da ruiva. Laura, respondeu ela. Chico pediu mais um chope e, ao reparar o copo de Laura vazio, fez sinal para o garçom trazer mais uma dose de uísque. A conversa estava agradável, mas Laura nem sequer indagara o nome do seu par. Achando que a ruiva demorava muito a perguntar o seu nome, se antecipou.

- Não quer saber o meu nome?
- Desculpe-me, não perguntei, né? – respondeu Laura.

Chico Manfrini se apresentou à ruiva, que sorriu para ele. Durante a conversa, que já durava pouco mais de uma hora, a pilha de bolachas de chope sobre a mesa marcava a quantidade que Chico Manfrini bebera. Laura, que estava na segunda dose de uísque, disse a Chico que precisava ir embora para corrigir provas bem cedo no dia seguinte. Laura era professora de História numa conhecida universidade. O jornalista ficou surpreso ao saber que Laura dava aulas porque a aparência dela nada tinha a ver com o de professora. Para o jornalista, ele pensou, Laura tinha qualquer outra atividade, menos atuar no magistério. Chico, além de dizer a Laura que era repórter, argumentou que ela não precisaria ir embora – era quase uma hora da manhã –, pois ele também trabalharia no dia seguinte.

Ele, porém, omitiu o horário que teria de chegar ao jornal. Chico chegaria à redação somente à tarde. Na conversa, o jornalista sugeriu a Laura que ficasse mais um pouco. Ela negou, pediu a conta e escreveu algo num guardanapo de papel. Laura pagou os uísques e se pôs de pé para ir embora. A ruiva entrou num táxi que estava parado na porta do bar e chamou o jornalista até à janela. Ali mesmo lhe entregou o guardanapo com algumas inscrições e foi embora. Chico, num primeiro momento, não olhou o pedaço de papel e pensou ser apenas o telefone de Laura. Cinco minutos depois, quando resolveu conferir o guardanapo, estava escrito: “Rua Joaquim Nabuco, 1890 / 409. Te espero lá”. Chico não acreditou no que leu. Nem ao menos tinha o telefone de Laura para confirmar o endereço.

Quase sem ar, o jornalista chamou Herfonso, dono bar, pendurou a conta e disparou em direção ao Posto 6. Ele queria pagar para ver. Como bom jornalista, queria comprovar a veracidade da história e foi de táxi até à casa de Laura. Ele não sabia bem a altura do número 1890 e pediu ao motorista para pegar a Rua Joaquim Nabuco na altura da Avenida Atlântica, na praia, para ver com calma todos os números da rua. Em frente ao 1890, disse ansioso para o taxista parar. Era ali. Chico Manfrini estava diante do prédio da ruiva. Não havia porteiro, apenas um aparelho de interfone. Mirou o número 409 e o apertou com o dedo indicador, sem ao menos saber se era lá mesmo, naquele apartamento, que a mulher morava. O interfone tocou. Laura, já imaginando ser o jornalista àquela hora da madrugada, apertou o botão para abrir a portaria. Chico Manfrini, desconfiado, abriu o portão de ferro e caminhou para o antigo elevador com porta pantográfica. Meio trêmulo, ele subiu até o quarto andar e saiu do elevador. Estava tudo escuro, não havia qualquer luz acesa. No fundo do corredor apenas uma penumbra denunciava uma porta entreaberta. Chico Manfrini, guiado pela fraca iluminação da sala da casa de Laura, foi diretamente ao encontro dela.

Ele não bateu na porta, pôs a cabeça para dentro e não viu qualquer sinal da ruiva. Mas não resistiu e entrou lentamente. Laura estava deitada num tapete de veludo cor de pérola, encoberta por um sofá de seis lugares com formato em “L”. Apoiando parte das costas numa grande almofada, ela segurava um copo de uísque e fumava um cigarro. Chico Manfrini, que nunca havia se deitado com uma ruiva, parecia atônito e não acreditava estar diante dela, que se cobria apenas com um curto babydoll vermelho bem transparente. Os seios fartos de Laura, entumecidos, pareciam querer saltar em direção a ele, que ficou estático por alguns segundos até ouvi-la chamar o seu nome. De repente, despertou do transe. Tirou o maço de cigarros e a caixa de fósforos da jaqueta, acendeu e deu uma profunda tragada. O jornalista parecia espantado com a beleza de Laura, o corpo perfeito protegido apenas por um babydoll. Aquelas curvas sensuais o atraíam. Chico Manfrini, num impulso, foi para cima de Laura e a beijou com vontade. Horas depois, ambos adormeceram ali mesmo, nus, os corpos suados, após uma madrugada inesquecível, sobre um macio tapete de veludo.

Às 10h30 da manhã de domingo, Chico Manfrini despertou, ainda nu, na sala da do apartamento de Laura. Ele não a viu ao seu lado. Chico se levantou, viu a sua roupa jogada num canto e foi à procura da ruiva. Não era um apartamento grande, tinha dois quartos. Nem sinal de Laura. Ele ainda foi ao banheiro na esperança de encontrá-la tomando banho, mas não havia nem sombra da mulher que o conquistou no bar do Herfonso. Chico Manfrini estranhou o sumiço e foi se vestir, já que ainda precisava trabalhar. Embaixo da sua jaqueta jeans, outro guardanapo feito aquele que Laura lhe dera na noite anterior: “Você foi adorável, me senti uma mulher de verdade. Mas, por favor, não volte mais. Saia e bata a porta”, escreveu a ruiva.

Chico foi tomando por um sentimento que lhe provocou imenso vazio, não estava entendendo o que acontecia depois de noite tão prazerosa. O jornalista já estava apaixonado por ela, mas percebeu que a decisão era definitiva. Ele vasculhou a casa e encontrou uma fotografia de Laura abraçada a um homem vestindo farda de comandante de uma companhia de aviação.    

Chico Manfrini fez exatamente o que Laura lhe disse. Bateu a porta do apartamento, pegou o elevador e foi embora. O jornalista caminhou pela Rua Joaquim Nabuco em direção à praia de Copacabana. O dia estava bonito, céu de brigadeiro, sol forte, muita gente na praia. O jornalista pensava em Laura. Mas sabia que tinha de trabalhar e não poderia perder tempo porque precisava investigar as falcatruas de Bicalho Pereira. Chico Manfrini foi até a sua casa, tomou banho e resolveu ir mais cedo para o jornal. Passou na padaria, pediu uma média com pão e manteiga e tomou café, mas ainda sentia algo estranho em relação ao que acontecera entre ele e Laura. No entanto, o jornalista precisava esquecer a ruiva e retomar os trabalhos. Ao chegar à portaria do Corneteiro encontrou dois colegas – um fotógrafo e uma jornalista – que saíam para uma reportagem sobre um maluco que fez a própria mulher e os dois filhos de reféns no apartamento onde moravam, em Madureira. Eles eram ameaçados com uma velha espingarda de caça.

Chico subiu à redação, pegou um bloco, a sua caneta Parker e sentou-se numa cadeira de madeira. Tirou a agenda telefônica da gaveta, abrindo-a na letra “R”. Telefonou para a casa do procurador da república Rocha Couto, chefe da Divisão de Inteligência do Ministério Público, com quem tinha bom relacionamento. Chico Manfrini queria saber se havia alguma novidade em relação às investigações sobre as atividades de Bicalho Pereira. Rocha Couto era um servidor público duro na queda, não aceitava suborno e já havia desmantelado várias quadrilhas de mafiosos, traficantes e contrabandistas. Rocha Couto, 52 anos, procurador há 20, era um admirador do juiz italiano Vittorio Leone, especialista em processos contra a máfia siciliana Cosa Nostra, que fora assassinado com os filhos quando criminosos dinamitaram a sua casa. Chico Manfrini discou o número de Rocha Couto, e o telefone tocou mais de oito vezes. Impaciente com a demora, ele estava quase desistindo quando alguém atendeu do outro lado.

- Doutor Rocha Couto?
- Sim.
- É Chico Manfrini, do Corneteiro, tudo bem com o senhor?
- Como vai Chico, tudo bem? O que você deseja?
- Não quero incomodá-lo, principalmente num domingo e quase na hora do almoço. Mas gostaria de saber se há alguma novidade sobre as investigações do senhor sobre Bicalho Pereira e a AFN.
- Realmente está na hora do almoço e eu estava saindo com a minha mulher e os meus filhos para almoçar na casa de um amigo. Se não for demorar, acho que tenho algo que pode lhe interessar. Numa investigação, descobrimos que um primo da mulher de Bicalho Pereira, cuja renda mensal é mínima, tem movimentado muito dinheiro numa agência do Royal Bank de Nova York. Há fortes indícios de que este dinheiro vem de um clube europeu, ligado à máfia russa e que já teria feito negócios com Bicalho. As buscas vão continuar, e vamos requisitar amanhã mesmo documentos ao Royal Bank – informou o procurador.
- Nossa, doutor, que bomba! Qual é o nome desse tal primo e quanto ele movimenta?
- Não sabemos ainda a quantia movimentada, mas é bem alta. O nome do primo da mulher de

Bicalho é Antônio Lourenço, conhecido como Tonhão Gafanhoto. Chico, preciso desligar porque estou atrasado. Espero tê-lo ajudado. Mas o nosso acordo de omitir o meu nome nas suas reportagens está de pé. Só quero ser citado quando eu conceder alguma entrevista coletiva. Caso contrário, não – afirmou o procurador.

- Claro doutor Rocha Couto, não citarei o senhor em momento algum, pode confiar em mim.

Muito obrigado e bon apetit– disse Chico Manfrini.

Vibrando como se tivesse marcado um golaço, o jornalista correu eufórico para a sala do editor-chefe, Antonio Girón, para lhe dizer a bomba que tinha nas mãos. Era um furo jornalístico de tamanha importância que iria repercutir estrondosamente. Chico Manfrini parou diante do aquário (nome dado às salas dos chefes) e viu o editor conversando ao telefone. Nem sequer bateu na porta. Pôs a mão na maçaneta e entrou de uma vez. Balançando o bloco de anotações, Chico fazia sinal para o chefe desligar o telefone. Antonio Girón, percebendo a ansiedade do repórter, falou algo em voz baixa para a outra pessoa que estava na linha e desligou.

- O que foi Chico, que euforia é essa? Acertou na loteca e vai pedir demissão?
- O que é isso chefe! Temos uma bomba para divulgar na edição de amanhã.
- Então diga o que é.
- Vou dizer, mas não posso revelar o nome da fonte porque tenho um acordo com ela.  
- Não quero saber o nome da fonte, quero saber o que você sabe. E bem rápido.

E Chico Manfrini relatou para o editor-chefe, que se deliciava ao ouvir a história. Chico comemorava porque já tinha o furo do dia. E o mais incrível: o relógio marcava 13h30. Era sinal de que, talvez, saísse da redação bem mais cedo do que o normal, já que trabalhava dez, doze horas por dia. Antes, porém, teria de sentar para redigir o texto. Depois da reportagem escrita, lida, relida e revisada, Chico Manfrini pediu ao departamento fotográfico do jornal uma foto de Bicalho Pereira.

Ao saber o teor da matéria, o editor de fotografia, Joaquim Ventura, famoso por registrar várias manifestações populares contra governos autoritários, escolheu a foto ideal: há alguns meses, Bicalho fora flagrado num restaurante, dando uma tremenda gargalhada, segurando com uma das mãos um charuto e com a outra uma coxa de frango frito. Às 15h45, Chico Manfrini se despediu dos colegas, pegou a sua bolsa e foi embora. Estava livre do trabalho, tinha conseguido um furo espetacular, mas não deixava de pensar na ruiva com quem dormira.

A passos largos, o jornalista andou da Rua da Passagem, sede da redação do Corneteiro, cruzou a Rua General Góis Monteiro e foi até à Avenida Lauro Sodré pegar o ônibus para Copacabana. Na Rua Barata Ribeiro, esquina com Rua Paula Freitas, tocou o sinal para descer. Torcedor do América, ele passou no bar do Herfonso para beber um chope e assistir pela TV Fluminense x Flamengo, que decidiriam o Campeonato Carioca naquela tarde de domingo. Chico Manfrini, antes mesmo de sentar-se à mesa do bar, pediu ao garçom um chope gelado, uma porção de salaminho e um maço de cigarros.

Quando o chope chegou, Chico reclamou e pediu outro porque não havia espuma. O bar estava lotado por causa do jogo. Muitos tricolores e rubro-negros se acomodaram diante da TV para assistir ao Fla-Flu. O falatório era geral, pouco se ouvia o que o locutor dizia. E as escalações já estavam sendo divulgadas. Uma informação pegou a todos de surpresa: o goleiro Carlitos, do Fluminense, considerado o melhor do Brasil, teve dor de barriga e estava fora da partida. Ximbica iria substituí-lo na decisão contra o Flamengo.

O bar do Herfonso estava animado, todo colorido de vermelho, preto, grená, verde e branco. Mas alguns tricolores ficaram apreensivos com a saída de Carlitos. Um tricolor otimista começou a gritar, afirmando que Ximbica era melhor do que Carlitos. Já os rubro-negros chamavam Ximbica de frangueiro porque ele havia jogado pelo Flamengo, mas trocou a Gávea pelas Laranjeiras. Chico Manfrini, naquela tarde, cruzou os dedos pelo Tricolor por causa de seu avô, que morrera há dois anos e era torcedor do Fluminense. Bola em jogo, Chico pediu mais chope ao garçom. Logo aos 12 minutos, numa bela trama do ataque tricolor, gol do Fluminense, marcado por Janjão, que chutou no canto esquerdo do goleiro Fiapo. A partida estava lá e cá, os times atacavam com perigo. O jogo estava franco, sem retranca e com muitos lances de tirar o fôlego. Quase no fim do primeiro tempo, já nos acréscimos, o Flamengo empatou, aos 47 minutos, após Curinga entrar na área do Fluminense, driblar toda a zaga e chutar cruzado no canto esquerdo de Ximbica: 1 a 1 no placar, e o árbitro apitou o fim da etapa inicial.

A discussão entre os torcedores se acirrou, quase todo mundo de porre em frente à TV. Chico Manfrini, ao mesmo tempo em que torcia para o time do avô, pensava em Laura. Mas ele nem sequer cogitou ir atrás dela porque o recado estava dado: “Não volte mais”. Ele, no entanto, ainda tinha um alento para deixar a ruiva de lado: a matéria sobre o presidente da AFN. Esta seria o início de uma investigação sensacional feita pelo jornalista. Os times voltaram a campo e se formaram para o início do segundo tempo. Chico Manfrini queria mais um chope.

Todos no bar estavam muito nervosos por causa da partida. Herfonso, torcedor do Botafogo, vibrava com a lotação do bar porque a féria do dia estava garantida. Tudo igual no marcador e os dois times continuavam jogando para a frente. Tricolores e rubro-negros buscavam o gol a qualquer custo. Era a decisão do Campeonato Carioca, um dos mais importantes do país. Enquanto a turma assistia à partida, os garçons não paravam de servir chope e tira-gosto para os fregueses, que cada vez consumiam mais.   

Chope para cá e chope para lá, tricolores e rubro-negros estavam atentos às jogadas. Não havia como dizer quem estava melhor na partida tamanha a raça e a qualidade técnica dos jogadores. Quem fosse campeão seria de forma justa porque havia luta de ambos os lados. Num contra-ataque do Flamengo, o meio-campo Pavão sofreu falta na entrada da área. Ele mesmo se posicionou para bater. Tomou pouca distância e chutou colocado, no ângulo, mas o goleiro Ximbica decolou e, com a ponta dos dedos, mandou a bola para escanteio.

Os torcedores rubro-negros se irritaram e xingaram o goleiro do Fluminense. Os tricolores vibravam com a espetacular defesa de Ximbica. O tempo passava, o fim da partida se aproximava, e a cada minuto ficava mais difícil saber com quem ficaria o título. A turma que estava no bar pedia mais chope. Os garçons também comemoravam porque a caixinha seria bem gorda.

O árbitro começou a olhar para o cronômetro, o fim da partida se aproximava. Mas o placar ainda marcava 1 a 1. A disputa iria para os pênaltis. Tiro de meta para o Fluminense. Ximbica dá um chutão para a frente, a bola viaja até o meio-de-campo e cai no pé direito de Maninho, que lança com precisão na ponta esquerda para Lídio. O atacante avança em direção à área rubro-negra, põe a bola entre as pernas do zagueiro e toca a bola na saída do goleiro Fiapo. Numa jogada sensacional, o Fluminense amplia, faz 2 a 1. Os rubro-negros não acreditam, a comemoração dos tricolores não para. O árbitro pôs a bola no centro do gramado para o Flamengo dar a saída. Um minuto depois, ele ergue o braço. Fim de jogo, Fluminense campeão carioca.

Os rubro-negros ficaram desolados, a choradeira foi grande. Os tricolores enlouqueceram. Pela conquista do título, um bebum tricolor foi até o caixa e pagou 30 chopes para serem distribuídos. Chico Manfrini subiu sobre a mesa e começou a gritar que o título era para o avô. Naquele momento não pensava mais em Laura. Chico ainda bebeu mais cinco chopes, pagou a conta e foi para casa descansar. Estava meio de porre, precisava deitar um pouco por causa do intenso dia.

O jornalista, que morava a uma quadra do bar do Herfonso, foi rapidamente para casa. Sacaneou o porteiro Genésio, um rubro-negro fanático que trabalha no seu prédio, e pegou o elevador. Entrou em casa e foi tomar banho quente, pois não suportava água fria. Depois, entrou na minúscula cozinha e preparou um sanduíche de queijo minas. Pegou uma lata de cerveja na geladeira, ligou o aparelho de som e pôs um disco de músicas francesas. Ouvindo o som, sentou-se no sofá da sala com o sanduíche e a cerveja. Ali, ele relaxou.

Sobre Marlos Bittencourt:
É jornalista e escritor. Nascido no Rio de Janeiro, é autor de Escravos do Jogo (Editora Multifoco, 2012) e editor do jornal O Povo. Passou ainda por importantes redações como as do Jornal dos Sports, Diário Lance!, Portal UOL, GloboEsporte.com, TV Record e Agência Sport Press.Don Juan de Cascadura é o seu segundo livro, mas há outros em estágio avançado.

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