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Ademir da Guia: Divino craque

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Qualquer brasileiro acima dos 40 anos, torcedor do bom futebol, pode e deve ser chamado de “saudosista”. Não é para menos. Quem viu jogadores em campo como Rivellino, Gérson, Pedro Rocha e Pelé, para ficar na geração do final dos anos 1960, sofre com o tédio da atual falta de craques nos principais clubes brasileiros.

Um desses gênios da bola que desfilou seu talento pelos gramados chamava-se Ademir da Guia. O apelido, Divino, diz quase tudo. Quase, porque a história do futebol reservou para a família Da Guia várias gerações de craques, o maior deles, Domingos da Guia, pai de Ademir.

Em 2001, coincidência ou não, coube a Kleber Mazziero, um maestro – como Ademir era em campo – escrever a biografia do último remanescente da geração dos Da Guia em campo.

“Divino – A vida e a arte de Ademir da Guia” (Editora Gryphus), apesar de esgotado atualmente, é livro obrigatório para todo amante da boa literatura esportiva. Ainda mais porque o autor do prefácio da obra foi outro gênio da bola, com ritmo e talento parecidos ao de Ademir. Ninguém menos do que o Doutor Sócrates.

Neste texto que Literatura na Arquibancada resgata logo abaixo, evidentemente, Sócrates relaciona, no início, o contexto daquele momento do futebol brasileiro, atolado em lama por conta das CPIs que agitavam o Congresso Nacional.

Logo a seguir, você leitor, também poderá ler um dos capítulos da obra, revelador de fatos pouco conhecidos da grande maioria. Ademir da Guia era para ter sido craque do Santos ou Barcelona, mas acabou se tornando o maestro de uma equipe que entrou para a história do futebol brasileiro como a “Academia”. O único time, regido pela batuta de Da Guia, a destronar o Santos do rei Pelé.

Prefácio
Por Sócrates

Sócrates e Ademir da Guia
Estamos vivendo um momento extremamente delicado na história de nosso futebol. Temos duas CPIs para investigar os bastidores de nosso esporte. Existem várias ações penais e fiscais contra alguns de nossos mais conhecidos personagens. A legislação vigente passará por outra transformação ainda mais radical. A qualidade técnica de nossos espetáculos está longe do que estávamos habituados. Vivemos da venda de nossos melhores artistas. A violência segue se alastrando. Os casos de doping são cada vez mais frequentes. Por tudo isso, o público se afastou dos estádios. Com este quadro, não há quem não sinta certa nostalgia dos bons tempos. Tempos em que a arte se expressava em toda a sua plenitude e o futebol era nosso mais importante diplomata.

Quando criança, fantasiávamos com os gestos de tantos astros que acompanhávamos. Um lançamento de Gérson, um drible de Rivellino, um toque de Coutinho, uma arrancada de Jairzinho, os gols de Pelé, a imponência de Carlos Alberto, o bailar de Garrincha, a folha seca de Didi, a liderança de Zito, a luta de Afonsinho ou a força de Vavá determinavam um eterno namoro entre o campo de jogo e as arquibancadas. Tudo era festa. Tudo era belo. Tínhamos referência para crescermos como jogadores das centenas de várzeas que então dispúnhamos, nas redondezas de nossos lares. Pernas de Pau ou não, vivíamos, em nossos sonhos, o desfilar dos astros dos gramados. Nas boléias dos caminhões que nos carregavam para as aventuras esportivas, levávamos uma esperança de vida que talvez hoje já não exista. Éramos livres e exercíamos esta liberdade de uma forma absolutamente saudável: através do esporte e dependentes de nossos ídolos. Ídolos que nos ensinavam, nos dirigiam, nos assessoravam na difícil missão de crescermos como homens e como cidadãos.

Tudo muito diferente de hoje em dia. Naquele tempo, o nosso futebol podia ser comparado a uma nobre arte: a dança. O contexto gerado pelos gestos, pelos passos, pelo ritmo e pela ginga compunham um ambiente de sonhos. O futebol brasileiro, em toda a sua trajetória, nos ofereceu centenas de grandes bailarinos que com suas coreografias encantaram o mundo. Da Guia foi um deles. Talvez o maior neste quesito. A colocação impecável, a fronte eternamente erguida, a calma irritante, o passe perfeito, a simplicidade dos gestos, o alcance dos passos, a lentidão veloz e o raciocínio implacável ficaram definitivamente em nossa memória. Ademir representou para uma geração – à qual me incluo – o vértice da serenidade e da competência. Sua postura sempre foi respeitosa e altaneira. Passeava pelos gramados como um cisne, encantando a todos que o acompanhavam.

Infelizmente, este arsenal de qualidades não foi suficiente para provocar a mesma repercussão internacionalmente. Da Guia foi o maior dos excluídos na seleção brasileira. A cada convocação, tínhamos uma sempre presente preocupação: será que desta vez ele estará? O clamor popular, que invariavelmente exigia sua presença para representar-lhes, nunca foi correspondido pelos que deveriam atender a esta ansiedade.

Sorte de quem por aqui estava. Fez parte de um dos maiores times que pude visualizar. A Academia do “Palestra” tinha nele o seu regente. E que regente! Apontando cada compasso como se fosse o único, chegou perto da perfeição. Raramente errava ou se exaltava. Era discreto e eficiente; o comportamento comunitário, tão raro nestes dias, exalava de sua figura mística. É uma honra poder apresentar-lhes este trabalho, que muito mais do que resgatar a história de Ademir da Guia, um dos nossos maiores jogadores, nos leva a um passado, não muito distante, repleto de sabedoria e encantamento.

Capítulo 4
A estaca zero

“Quando comecei no Bangu, o titular da posição era um jogador chamado Valter. Fiquei na reserva dele por um tempo, mas, não me lembro com certeza, tenho a impressão de ter passado logo para o time titular.”

Ademir foi testado, no princípio, na zaga (um filho de Domingos da Guia deveria ser zagueiro), mas o meio-de-campo era o seu lugar. Domingos acompanhava os primeiros momentos da carreira do filho. “Eu não tive nenhuma influência na maneira de jogar do Ademir. Ele, como eu, nasceu sabendo jogar futebol. Ele já sabia dar o seu estilo ao time. Protegia bem a bola, tocava e lançava bem, jogava com sabedoria. Ele já tinha aquela maneira de jogar que sempre deu a impressão a algumas pessoas de ser um jogador lento. Só que isso era um modo de jogar que eu tive e meus irmãos também tiveram. Ele herdou isso da gente. É de família.”

Ademir jogou pelo infantil do Bangu em 1957, ficando em terceiro lugar no Campeonato Carioca, e 1958, quando foi vice-campeão. “Tive muita ajuda e orientação do Moacir Bueno. Ele tinha jogado com meu pai no Bangu e foi meu primeiro treinador. Depois, no juvenil, o treinador era Elba de Pádua Lima, o Tim. Também com ele tive um aprendizado muito grande, muito rico. Ele me ensinou muita coisa.”

No final de 1958, Ademir fez um treino e disputou um jogo amistoso pelo infantil do Botafogo. Mesmo tendo jogado muito bem e despertado o interesse do clube, não pôde ficar no time, devido ao estágio obrigatório de um ano que deveria cumprir pela transferência.

Ademir e Domingos da Guia
No início de 1959, Domingos da Guia tomou o filho bom de bola pela mão e embarcou no trem rumo a São Paulo. “Meu pai tinha a intenção de me levar para fazer um teste no Corinthians. Quando desembarcamos em São Paulo, ele mudou de ideia. Ao invés de irmos para o Parque São Jorge, tomamos um ônibus e fomos para Santos. Ele disse que tinha um conhecido lá e, portanto, seria mais fácil eu ter uma chance de treinar. Isso veio a ser confirmado quando lá chegamos. Meu pai encontrou o conhecido dele e ficou combinado que eu faria o teste à tarde. Fomos tomar um lanche num bar em frente à Vila Belmiro e voltamos para a hora do treino, no campo que ficava atrás do estádio. O time principal do Santos estava  no exterior, numa excursão de início de temporada. O Coutinho tinha ficado no Brasil para se recuperar de uma contusão. Como já tinha terminado o tratamento, ele foi o árbitro do treino. Joguei bem.

O treinador da equipe juvenil foi falar com meu pai:
– O garoto interessa. Se ele quiser, pode ficar.
– Quanto é o salário?
– Nove mil cruzeiros por mês.
– Ele só fica por treze mil.
– Desculpe, seu Domingos, mas nove mil é o salário mais alto que posso oferecer para um jogador da equipe juvenil. Eu acho que ele vale os treze, mas não tenho autonomia para passar dos nove mil. Vamos ter de esperar o Lula (treinador do time principal) voltar da excursão. Como estava próximo do carnaval, ponderei com meu pai que poderíamos ir para o Rio de Janeiro e, depois do carnaval, voltaríamos a Santos para decidir a situação, já com o Lula de volta. Meu pai aceitou. Quando chegamos ao Rio, antes mesmo do carnaval, meu pai foi convidado para ser o treinador do infantil do Bangu e eu, para integrar a equipe juvenil. O salário de meu pai seria de quatro mil e quinhentos cruzeiros por mês, se não me engano, e o meu de dois mil e quinhentos. Ficamos no Bangu. Juntos, ganhávamos menos do que os nove mil cruzeiros que ganharia, sozinho, no Santos. Por vezes, imagino se tivesse ficado lá...Teria sido interessante jogar naquele time espetacular do Santos, com todas aquelas feras.”

No segundo semestre de 1959, Ademir disputou, pelo Bangu, o Campeonato Carioca de juvenis. Marcou seu primeiro gol, de cabeça, pela equipe principal, na goleada sobre o Flamengo por 5 x 1. “Eu disputei o Campeonato Carioca juvenil com dezessete anos e nós fomos campeões. O time base era: Helinho, Roberto e Índio; Fred, Romeu e Ananias; Valdir, Zé Maria, Dorval, eu e Paulo César. O treinador, do time principal e do juvenil, era o Tim. Como nossa equipe brilhou, quatro jogadores foram para o time ‘de cima’, jogar com os profissionais: o Zé Maria, o Dorval, centroavante, o Helinho, goleiro, e eu.”

Bangu, na vitória sobre a Sampdoria. Ademir é o 2º agachado
Em 1960, a equipe principal do Bangu sagrou-se campeã do Torneio de Nova York. “Nosso time era muito bom. A gente ganhou da Sampdoria, no primeiro jogo, por 4 x 0.”

Em 1961, o Bangu, como campeão, disputou novamente o torneio. “Jogamos em Portugal e na Espanha antes de irmos para Nova York. Perdemos o jogo contra o Barcelona por 4 x 3 porque o nosso goleiro estava mal. Fazíamos um gol lá e ele levava outro aqui. O Barcelona quis comprar meu passe por dezesseis mil dólares. Eu estava no hotel, entrou um rapaz e me mostrou o jornal, mas não falaram comigo, nem nada.”

Na volta da excursão, Ademir foi vendido para o Palmeiras, ganhando oitocentos mil cruzeiros de luvas e sessenta mil por mês. O presidente do Bangu lavou em ata, em alusão ao mau funcionamento de um meio de transporte coletivo da época: “...e assim, por três milhões e oitocentos mil cruzeiros, vendemos um bonde para o Palmeiras.” Domingos contou: “O presidente do Bangu, naquela época, não me olhava com muito carinho. Outros dirigentes achavam que o Ademir não se firmaria na equipe principal. Eu tinha vontade de leva-lo para outro time.”

O treinador Armando Renganeschi vira Ademir atuar pelo time juvenil do Bangu em um jogo contra o Guarani, em 1959, e pedira a sua contratação para o ano seguinte. O Guarani não conseguiu viabilizar o negócio, mas Domingos assegurou o compromisso com o amigo. “Eu prometi para o Renganeschi que quando fosse vender o Ademir, ele seria o primeiro a ser informado.” No dia 7 de agosto de 1961, Domingos da Guia entrou eufórico em casa e disse para o filho: “Você vai jogar no Palmeiras!” Em seguida, deu-lhe três conselhos: “O seu futebol vem do berço. Cuidado com as divididas. Tem muita gente que entra na maldade. Cuidado com as negociações. Nas renovações de contrato, deixe que alguém de confiança faça por você. Nada de farras. Quanto menor o desgaste do corpo, maior o tempo de carreira. Vai com Deus, meu filho.”

Sobre o autor:
Kleber Mazziero, além de escritor é maestro, autor do CD “Música de Preto”, da série de CDs “A Música de Câmara de Kleber Mazziero de Souza”, e do livro “Prezado Amigo Afonsinho”, biografia do primeiro jogador a obter o passe livre em toda a história do futebol.

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