Após quase três anos, Literatura na Arquibancada retorna com novas histórias e personagens. Final, temporário, com um nome de peso da literatura brasileira, Carlos Drummond de Andrade. Recomeço com outro personagem histórico da literatura mundial. Eduardo Galeano, um craque das letras, nos deixou em abril de 2015, mas seu legado para a literatura esportiva, segue em frente.
Em 2018, mais um livro histórico, Fechado por motivo de futebol (L&PM editores). São 87 crônicas, muitas delas, inéditas, 228 páginas extraordinárias. Textos refinados, que refletem a eterna preocupação do autor uruguaio em dimensionar futebol, política e história. Histórias do cotidiano de personagens anônimos e famosos de um jogo que só mesmo Galeano consegue proporcionar. Histórias que nos dão a importância do futebol em sociedades espalhadas pelos quatro cantos do planeta.
Já havia sido assim, desde 1995, quando foi lançado seu “Futebol ao sol e à sombra” e retratado aqui, em resenha de mestre Domingos D’Angelo, um dos incentivadores do retorno do Literatura na Arquibancada (http://www.literaturanaarquibancada.com/2011/11/o-futebol-ao-sol-e-sombra.html).
E não é diferente, agora, com Fechado por motivo de futebol.
Logo na abertura da sinopse da editora aos leitores, a justificativa do título da obra.
“O futebol sempre fascinou Eduardo Galeano, que sobre o assunto tem nada menos que um clássico, Futebol ao sol e à sombra. Ao longo da vida, o uruguaio Galeano escreveu e viveu a paixão pelo esporte, infinitamente mais intensa a cada Copa do Mundo, e dessa paixão surgiu o volume que o leitor tem em mãos. Aqui estão reunidos todos os outros textos do autor sobre esse esporte capaz de despertar emoções coletivas, alguns já publicados esparsamente em livros, mas também vários inéditos e verdadeiros achados, como a crônica em que chama Che Guevara de “traidor” por ter trocado o futebol pelo beisebol em Cuba.
Fechado por motivo de futebol propõe um itinerário pela história deste esporte, desde o tempo em que os jogadores recebiam uma vaca (!) por gol marcado até a época dos atletas multimilionários.
As páginas também falam de Pelé, Maradona, Zidane e outros grandes e pequenos nomes desse universo, que para o autor não é só um esporte, mas muitas vezes um retrato de como caminha a humanidade.
Galeano, com suas crônicas que mais parecem poesia, nos dá o melhor de suas grandes paixões: o futebol, a literatura e a história.”
Se já conseguimos pensar quanto são encantadoras as páginas escritas por Galeano, só pela sinopse, acima, apresentada, o que dizer de alguns textos que publicamos a seguir. Um deles, Galeano explica a razão de suas duas maiores paixões: o futebol e a escrita. Muito mais do que isso, a certeza da capacidade (e necessidade) do ser humano de se reinventar.
Por que escrevo
“Para começar, uma confissão: desde que era bebê, eu quis ser jogador de futebol. E fui o melhor dos melhores, o número um, mas só em sonhos, enquanto dormia.
Ao despertar, nem bem caminhava um par de passos e chutava alguma pedrinha na calçada, já confirmava que o meu negócio não era o futebol. Estava na cara; eu não tinha outro remédio a não ser tentar algum outro ofício.
Tentei vários, sem sorte, até que finalmente comecei a escrever, para ver se saía alguma coisa.
Tentei, e continuo tentando, aprender a voar na escuridão, como os morcegos, nestes tempos sombrios.
Tentei, e continuo tentando, assumir minha incapacidade de ser neutro e minha incapacidade de ser objetivo, talvez porque me nego a me transformar em objeto, indiferente às paixões humanas.
Tentei, e continuo tentando, as mulheres e os homens animados pela vontade de justiça e pela vontade beleza, além das fronteiras dos tempos e dos mapas, porque eles são meus compatriotas e meus contemporâneos, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido.
Tentei, e continuo tentando, ser tão teimoso para continuar acreditando, apesar de todos os pesares, que nós, os humaninhos, somos bastante malfeitos, mas não estamos terminados. E continuo acreditando, também, que o arco-íris humano tem mais cores e mais fulgores que o arco-íris celeste, mas estamos cegos, ou melhor, enceguecidos, por uma longa tradição mutiladora.
E em definitivo, resumindo, diria que escrevo tentando que sejamos mais fortes que o medo do erro ou do castigo, na hora de escolher no eterno combate entre os indignos e os indignados.”
Eduardo Galeano tinha verdadeiro fascínio pelos craques do futebol, especialmente aqueles que encantaram torcedores de todo o universo.
Com seu olhar diferente sobre esses homens mágicos da bola, Galeano gostava de mergulhar na alma e essência de suas vidas.
Na sequência, abaixo, um deles, Diego Maradona. Duas crônicas, fases distintas do craque argentino, do nascimento ao drama com as drogas. E Galeano cria, até mesmo, a definição da droga que, por pouco, quase matou Maradona: sucessoína.”
O parto
“Ao amanhecer, dona Tota chegou a um hospital no bairro de Lanús. Ela trazia um menino na barriga. No umbral, encontrou uma estrela, na forma de prendedor de cabelos, jogada no chão.
A estrela brilhava em um lado, e no outro não. Isso acontece com as estrelas, toda vez que caem na terra, e na terra se reviram: em um lado são de prata, e fulguram esconjurando as noites do mundo; e no outro são só de lata.
Essa estrela de prata e de lata, apertada na mão, acompanhou dona Tota no parto.
O recém-nascido foi chamado de Diego Armando Maradona.”
Maradona
“Nenhum jogador consagrado tinha denunciado sem papas na língua os anos do negócio do futebol. Foi o esportista mais famoso e mais popular de todos os tempos quem rompeu barreiras na defesa dos jogadores que não eram famosos nem populares.
Esse ídolo generoso e solidário tinha sido capaz de cometer, em apenas cinco minutos, os dois gols mais contraditórios de toda a história do futebol. Seus devotos o veneravam pelos dois: não apenas era digno de admiração o gol do artista, bordado pelas diabruras de suas pernas, como também, e talvez mais, o gol do ladrão, que sua mão roubou. Diego Armando Maradona foi adorado não apenas por causa de seus prodigiosos malabarismos, mas também porque era um deus sujo, pecador, o mais humano dos deuses. Qualquer um podia reconhecer nele uma síntese ambulante das fraquezas humanas, ou ao menos masculinas: mulherengo, beberrão, comilão, malandro, mentiroso, fanfarrão, irresponsável.
Mas os deuses não se aposentam, por mais humanos que sejam.
Ele jamais conseguir voltar para a anônima multidão de onde vinha.
A fama, que o havia salvado da miséria, tornou-o prisioneiro.
Maradona foi condenado a se achar Maradona e obrigado a ser a estrela de cada festa, o bebê de cada batismo, o morto de cada velório. Mais devastadora que a cocaína foi a sucessoína. As análises de urina ou de sangue, não detectam essa droga.”
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Manuel Alba Olivares |
Por intermédio da genialidade de Maradona, Eduardo Galeano consegue nos apresentar outro personagem espetacular no mundo do futebol.
O colombiano Manuel Alba Olivares é o único cego que se tornou técnico, fundador e presidente de um clube de futebol, história que pode ser conhecida em maior profundidade neste link ( http://revistauncanio.com.ar/la-dimension-desconocida/ojos-bien-cerrados/)
O gol do século
“13 de julho
Neste dia do ano de 2002, o órgão supremo do futebol divulgou o resultado de uma pesquisa universal. Escolha o gol do século XX.
Ganhou, por esmagadora maioria, o gol de Diego Maradona no Mundial de 1986, quando dançando com a bola grudada no pé, deixou seis ingleses perdidos pelo caminho.
Essa foi a última imagem do mundo que foi vista por Manuel Alba Olivares.
Ele tinha onze anos, e naquele mágico momento seus olhos se apagaram para sempre. Mas ele guardou o gol intacto na memória, e é capaz de contar esse gol muito melhor que os melhores locutores.
A partir daquele momento, para ver futebol e outras coisas não tão importantes, Manuel pede emprestados os olhos dos amigos.
Graças a eles, esse colombiano cego fundou e preside um clube de futebol, foi e continua sendo o técnico do time, comenta os jogos em seu programa de rádio, canta para divertir a audiência e nas horas vagas trabalha como advogado.”
Apesar de mergulhar nas histórias de vidas dos craques, Eduardo Galeano gostava mesmo é de explicar as razões para o futebol ser tão apaixonante, por intermédio daqueles que tornam o esporte um fenômeno mundial: os torcedores.
Papai vai ao estádio
Em Sevilha, durante um jogo de futebol, Sixto Martínez comenta comigo:
- Aqui existe um torcedor fanático que sempre traz o pai.
- Claro, é natural – digo. – Pai boleiro, filho boleiro.
Sixto tira os óculos, crava o olhar em mim:
- Este de quem estou falando vem com o pai morto.
E deixa as pálpebras caírem:
- Foi seu último desejo.
Domingo após domingo, o filho traz as cinzas do autor de seus dias e as põe sentadas ao seu lado na arquibancada.
O falecido tinha pedido:
- Me leva para ver o Betis da minha alma.
Às vezes o pai ia até o estádio numa garrafa de vidro.
Mas numa tarde os porteiros impediram a entrada da garrafa, proibida graças à violência nos estádios.
E a partir daquela tarde, o pai vai numa garrafa de papelão plastificado.
Sobre o autor
Eduardo Galeano (1940-2015) nasceu em Montevidéu, no Uruguai. Viveu exilado na Argentina e na Catalunha, na Espanha, desde 1973. No início de 1985, com o fim da ditadura, voltou a Montevidéu.
Galeano comete, sem remorsos, a violação de fronteiras que separam os gêneros literários. Ao longo de uma obra na qual confluem narração e ensaio, poesia e crônica, seus livros recolhem as vozes da alma e da rua e oferecem uma síntese da realidade e sua memória.
Recebeu o prêmio José María Arguedas, outorgado pela Casa de las Américas de Cuba, a medalha mexicana do Bicentenário da Independência, o American Book Award da Universidade de Washington, os prêmios italianos Mare Nostrum, Pellegrino Artusi e Grinzane Cavour, o prêmio Dagerman da Suécia, a medalha de ouro do Círculo de Bellas Artes de Madri e o Vázquez Montalbán do Fútbol Club Barcelona.
Foi eleito o primeiro Cidadão Ilustre dos países do Mercosul e foi o primeiro escritor agraciado com o prêmio Aloa, criado por editores dinamarqueses, e também o primeiro a receber o Cultural Freedom Prize, outorgado pela Lannan Foundation dos Estados Unidos. Seus livros foram traduzidos para muitas línguas.