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Lourenço Diaféria: saudades de um cronista

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Há cinco anos a literatura brasileira perdeu um de seus maiores cronistas. Lourenço Diaféria tinha 75 anos e durante todo o período que escreveu para diversos jornais, o futebol sempre esteve presente. Corintianíssimo, Diaféria deve estar feliz lá no céu, ao lado do Dr. Sócrates, um dos personagens da crônica abaixo que o Literatura na Arquibancada resgata de uma de suas obras, Circo de Cavalões(Editora Summus, 1978, p. 129-132).

Antena ligada
Por Lourenço Diaféria


Troquei meu televisor em branco-e-preto por um televisor em cores com controle remoto, para facilitar a vida de meus filhos, que agora, sabe como é, época de provas, estão se virando mais que pião na roda. Imaginem que outro dia um professor teve a coragem de mandar meu filho gavião-da-fiel fazer um trabalho sobre o Sócrates. Fiquei uma arara. Em todo caso, apanhei a revista Placar e recomendei que o garoto consultasse os arquivos esportivos da Folha e do Jornal da Tarde. Não é por ser meu filho, mas o guri caprichou do primeiro ao quinto. Tirou zero.

Puxa, assim também é demais. Resolvi levar um papo com o professor, ver se não era perseguição. O professor foi muito gentil, porém ninguém me tira da cabeça que ele é palmeirense disfarçado de são-paulino. Garantiu-me que havia ocorrido um equívoco. O Sócrates que ele queria é um craque da redonda que tomou cicuta. Essa é boa. Por que não avisou antes? Como é que vou adivinhar que o homem jogava dopado?

Me manquei, mas o professor percebeu meu azedume. Disse que ia dar uma nova oportunidade.

Falou, eu disse.

Preveni meu garoto que ficasse de orelha em pé, lá vinha chumbo. Dito e feito. O professor, deixando cair a máscara alviverde, deu uma de periquito campineiro e pediu um trabalho completo sobre o Guarani.

Deixa que eu chuto, falei a meu filho. Pode contar comigo na regra três. Eu mesmo cuido da pesquisa.

Peguei a escalação completa do Guarani, botei o Neneca no gol, fiz a maior apologia do time da terra das andorinhas. Pra me cobrir e não deixar nenhum flanco desguarnecido, telefonei pro meu amigo Antônio Contente, que transa em assuntos culturais e conexos (como seja a imprensa), e pedi por favor que me mandasse uma camisa oito autografada. Diretamente de Campinas e pelo malote.

Guarani, campeão brasileiro 1978.

Não é pra falar, mas o trabalho escolar ficou um luxo. Sem falsa modéstia, estava esperando pro meu filho no mínimo aprovação cum laude e placa de prata, para não dizer medalha de honra ao mérito.

Pois deu zebra. Começo a desconfiar que o tal professor me armou uma arapuca e entrei fácil, como um otário. O homem deve ser primo do Dicá. Sabem o que o mestre fez? Heim? Querem saber? Deu outro zero pro meu filho. O pior é que não devolveu a camisa oito autografada.
Essa não deixei barato. Fui de peito aberto, às falas.

– Ilustre – eu disse – com o perdão da palavra, mas que diabo de safadeza vossa senhoria anda arrumando pro meu garoto gavião-da-fiel? Então eu perco tempo, pesquiso, consulto a história gloriosa da equipe campineira, faço a maior zorra com o time do Brinco da Princesa, e o garoto ganha cartão vermelho?

Que grande cínico! O homem me olhou com aqueles olhos de olheiras – acho que tem almoçado e jantado mal, sei lá, dizem que professor padece um bocado – coçou a cabeça, murmurou:

– Foi o senhor quem fez a lição?


Fiquei meio sem jeito:

– Bem, fazer não fiz. Dei uma orientação didática. Pai é para essas coisas...

Ele não se comoveu. Ao contrário, foi até rude:

– Se aceita um conselho, pare de dar palpite na lição de casa de seu filho. O senhor não conhece nada do Guarani.

Falar isso na minha cara! Tive de aguentar calado. Nunca soube que no diacho do time campineiro figurasse a dupla de área chamada Peri e Ceci. E com essa constante mudança de técnicos, como podia sacar que o técnico atual é o Zé de Alencar?

– Tá bem – eu disse – não vamos brigar por tão pouco. O professor pode dar outra colher de chá ao menino?

"O Guarani", telenovela baseada
no romance homônimo de José de
Alencar, exibida em 1991, pela TV Manchete, 
dirigida por Walcyr Carrasco.

Deu. O professor quer agora os capítulos completos de um romance, por coincidência com o mesmo nome do time de Campinas: o Guarani. É qualquer coisa com índio sioux que de repente se vê obrigado a salvar uma mulher biônica das águas da enchente. Deve ser telenovela em cores. Mas só para complicar a vida do meu filho, o professor não revelou o horário. Porém desta vez ele não me ferra. Pela dica do enredo que deixou escapar, deve ser mais uma dessas sucessões de cenas de violência que a gente é obrigada a engolir todas as noites na televisão. Estou de antena ligadona, meu chapa.










Sobre Lourenço Diaféria:

Nasceu no bairro do Brás, em São Paulo (SP), no ano de 1933. Contista, cronista e autor de histórias infantis, o jornalista iniciou sua carreira em 1956 na “Folha da Manhã”, hoje “Folha de S. Paulo”, como preparador de matérias. Em 1964 escreveu sua primeira crônica assinada. Ficou na “Folha” até 1977, ano em que foi preso e processado com base na Lei de Segurança Nacional pela autoria da crônica “Herói. Morto. Nós", considerada ofensiva às Forças Armadas. O processo durou cerca de três anos e terminou com a absolvição do cronista, que posteriormente voltou a atuar na “Folha de S. Paulo”. No ano de sua prisão, 1977, o conto “Como se fosse um boi” é premiado com o quarto lugar no VII Concurso Nacional de Contos do Paraná e incluído no livro Novos Contistas, editado pela Francisco Alves Editora. Colaborou também no “Jornal da Tarde”, “Diário Popular”, “Diário do Grande ABC”, e escreveu para as rádios "Excelsior", "Gazeta", "Record", "Bandeirantes" e para a "Rede Globo".

Algumas obras do Autor:

Um gato na terra do tamborim, 1976
Circo dos Cavalões, 1978
A morte sem colete, 1983
A longa busca da comodidade, 1988
O invisível cavalo voador – Falas contemporâneas, 1990
Papéis íntimos de um ex-boy assumido, 1994
O imitador de gato, 2000
Brás – Sotaques e desmemorias, 2002

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