Ele ficou conhecido como “Homem Abril”. Cláudio de Souza é um daqueles homens que desapareceram da “grande mídia” brasileira. Um assessor direto do dono da maior editora brasileira durante décadas, Cláudio era chamado constantemente por Victor Civita, dono do império Abril Editoras, para implantação de novos projetos de revistas. Muito mais do que isso, durante 25 anos, Cláudio foi um dos funcionários mais destacados da Abril, o sétimo, oficialmente. Entre março de 1951 e setembro de 1975, ele passou por quase todos os departamentos da empresa e durante 8 anos trabalhou como assessor pessoal do seu fundador, o americano Victor Civita.
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Cláudio de Souza (centro) |
Cláudio era apaixonado por quadrinhos e durante décadas lançou gibis que existem ainda há 30, 40, 50 anos, como “Mickey”, “Zé Carioca”, “Mônica”, “Cebolinha” e muitos outros.
Entre 1971 e 1974 quando esteve à frente do Departamento de Publicações Infanto-Juvenis da Abril, triplicou a tiragem mensal das revistas, que pulou de 1,4 milhão para 4 milhões.
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Edição número 1 de Placar |
E foi assim, pouco antes de se tornar um fenômeno no mercado de quadrinhos, que Cláudio se tornou também criador de “Placar”, a revista esportiva de maior prestígio do país durante décadas.
Cláudio era apaixonado por futebol. São-paulino assumido, chegou a ser um dos sócios fundadores do clube.
A história que você, leitor, acompanha abaixo foi relatada no espetacular livro escrito por Gonçalo Junior, “O homem Abril – Cláudio de Souza e a história da maior editora brasileira de revistas” (Opera Graphica Editora, 2005).
O mais surpreendente neste trecho é a declaração de Cláudio de Souza sobre o verdadeiro ano de criação da revista Placar, em 1952.
Cláudio de Souza, partiu em junho de 2012, quando tinha 84 anos de uma vida repleta de histórias na mídia brasileira.
Placar
Por Cláudio de Souza
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Cláudio de Souza (direita), Victor Civita (centro) e Gilberto Couverso. |
Em março de 1970, Cláudio de Souza atingiu o auge como funcionário da Editora Abril. Seu nome figurava, então, entre os cinco mais importantes do grupo, como vice-presidente do departamento de livros didáticos. Mais uma vez, com o núcleo sob sua responsabilidade encaminhado, ele viu o comando ser tirado de suas mãos e entregue a um dos executivos da empresa. A justificativa era a de sempre: novos desafios o aguardavam. Desta vez, porém, ninguém era melhor que ele para a missão.
Notório apaixonado por futebol, ele foi designado por Victor e Roberto Civita para dirigir o novo lançamento da editora: a revista esportiva “Placar”. A história da publicação começara, na verdade, dezoito anos antes, em 1952, durante os Jogos Olímpicos de Helsinque, na Finlândia. O time de futebol do Brasil fez boa campanha e virou orgulho nacional, uma esperança de volta por cima depois do fiasco da Copa de 1950, embora a seleção olímpica não viesse a disputar a final. Em compensação, Ademar Ferreira da Silva voltou para casa com a medalha de ouro no salto triplo.
Empolgado com o desempenho dos brasileiros na competição, Cláudio sugeriu a Civita a criação de uma revista esportiva. “Falei-lhe da paixão do brasileiro pelo futebol e como eu imaginava a publicação: com fotos, muitas fotos, muitas cenas de gols; sequências fotográficas conseguidas com máquinas modernas; textos curtos e muitas charges – um mundo, o mundo dos esportes”.
O então assessor sugeriu até o título, “Placar”, que Civita teria anotado cuidadosamente numa folha de papel. Quando o assistente terminou de falar, o fundador da Abril teria se limitado a dizer: “Faz um boneco da revista e me mostra”. Algumas semanas depois, Cláudio apresentou-lhe o modelo. Civita imediatamente mandou registrar o nome “Placar” no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Depois, folheou cuidadosamente o projeto e deu o veredicto: “A ideia é ótima, o boneco é muito bom, mas ainda não estamos prontos para fazê-la, falta-nos estrutura”. O auxiliar comentou depois: “Mesmo assim, eu estava eufórico, metade do caminho estava vencido. Ele gostara da proposta e queria fazer a revista. Agora era só esperar”.
E que espera. Quase duas décadas. Mas a primazia foi mantida. “Placar” virou realidade pelas mãos de seu idealizador. Dois fatos impulsionaram o lançamento da revista: a Copa do Mundo de 1970 e o furor causado no país com a implantação da Loteria Esportiva pela Caixa Econômica Federal, que tinha como mote “Aprenda a ficar tão rico quanto Pelé”. “Apostou-se no sucesso da loteria”, recordou Cláudio. Tanto que a seção mais lida de “Placar” nos primeiros anos seria justamente a de prognósticos dos resultados. Apostadores, dirigentes de clubes e diretores de federação festejaram a loteria porque parte do dinheiro arrecadado iria para o financiamento dos esportes.
Quando Cláudio foi chamado à sala de Civita para conversar com ele e Roberto sobre um novo projeto da Abril, o dono da editora literalmente tirou o mesmo projeto de “Placar” de 1952 de dentro do que chamava de sua “gaveta de boas ideias”. O lançamento foi preparado em segredo de estado. Cláudio organizou um grupo de trabalho para atualizar a sugestão da década anterior, chefiado por Paulo Patarra, que fora redator-chefe de “Quatro Rodas” – quando Mino Carta era o diretor – e, depois, ocupou o mesmo cargo em “Realidade”. Quando assumiu “Placar”, Patarra era diretor de Novos Projetos da editora.
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1º volante da Loteria Esportiva |
No começo das discussões, a ideia central era fazer de “Placar” uma espécie de “órgão oficial” da Loteria Esportiva, a única a fornecer os “comprovantes dos prognósticos” com suas três colunas – a da direita, a da esquerda e a do meio. O plano de Civita era, no mínimo, inusitado. Para não dizer absurdo ou ingênuo. Ele esperava convencer a Caixa Econômica a atrelar à revista, com exclusividade, os prognósticos e demais informações sobre a loteria. Ou seja, os jogadores teriam de comprar “Placar” para acompanhar a loteca.
Os demais órgãos da imprensa, claro, agiram rápido e transformaram o assunto em um tema de utilidade pública. Assim, passaram a ter direito também aos dados da Caixa. Nem por isso o entusiasmo de Civita pela nova publicação arrefeceu. Convenceu-se de que o futebol, por si só, era suficiente para manter o interesse do leitor. E acrescentou ao lançamento um brinde com o propósito de atrair esse público: deu como cortesia uma medalha metálica dourada com a efígie de Pelé.
Civita tratou pessoalmente da promoção. Sem falar com ninguém, arranjou um escultor para conceber a moeda. Conseguiu também um fornecedor para prensá-la sem custos. Só depois que o amuleto estava estocado no depósito da gráfica, o empresário revelou o acordo que fizera com Pelé. Surpresa tiveram os funcionários da distribuição quando viram chegar caixas com milhares de moedas que estampavam o rosto do craque.
E, assim, foi lançado o número 1 da revista, em março de 1970, com o brinde colado na capa. Internamente, trazia um time respeitável de redatores, repórteres e fotógrafos: José Maria de Aquino, Woile Guimarães, Hedyl Valle Júnior, Dante Matiussi, Michel Laurence, Moacir Azedo, Hamilton de Almeida Filho e Lenir Martins, entre outros. No meio da equipe havia vários prêmios Esso de Jornalismo e estrelas dos tempos de “Realidade”. “Era uma equipe de campeões que se mostrou um time campeão”, afirmou Cláudio, que dirigiu a revista no primeiro ano.
A redação de “Placar” escrevia e fotografava para o público do futebol que o editor definiu como o mais democrático dos leitores. “É assim porque atingia todas as classes sociais e todos os bolsos – intelectuais, analfabetos, ricos, pobres, gente bonita e feia, todos os crentes e descrentes”. A revista misturou inicialmente reportagens de dentro e fora do campo, com a cobertura dos jogos e detalhes dos bastidores.
Na opinião de Cláudio, os dois melhores trabalhos de sua fase à frente da revista foram as entrevistas exclusivas com João Saldanha e Pelé e a série de reportagens inventadas sobre a venda em bloco, para a Arábia Saudita, de todos os jogadores do Santos, inclusive de Pelé.
Saldanha acabara de ser demitido do cargo de técnico da Seleção Brasileira de futebol, a mesma que seria tricampeã no México meses depois. Foi nessa época que ele cunhou a expressão “feras” no futebol brasileiro. “Quero onze feras em campo!”, disse ele pouco antes da Copa. O treinador, entretanto, sofreu forte pressão da imprensa e, consequentemente, do público porque ousara barrar Pelé num jogo-treino. E deixou o cargo, mas saiu atirando. Os disparos foram repercutidos com exclusividade na entrevista que Pelé concedeu a “Placar”.
A reportagem sobre a suposta venda do time do Santos foi uma jogada da revista, segundo seu editor, para mostrar o despreparo e as proverbiais más intenções dos cartolas nacionais. Tudo começou quando um repórter freelancer contratado pela revista, que tinha cara e jeito de árabe – inclusive falava árabe porque era descendente – se apresentou ao clube santista com uma proposta “oficial” para aquisição de alguns craques em nome de um clube saudita.
Os cartolas engoliram a pílula e aí começou o leilão da venda dos “passes” dos jogadores e eventuais “comissões” que eles embolsariam por fora. A farsa foi alimentada por várias edições da revista e expôs ao público o mundo da cartolagem. Quando “Placar” revelou a verdade sobre a história no capítulo final, a editora deu um “sumiço estratégico” no colaborador, até a poeira baixar.
Com seu estilo agressivo, sem limitar-se à tietagem dos jogadores, “Placar” logo conseguiu merecido destaque no jornalismo esportivo brasileiro. Padecia, no começo, porém, de um mal congênito: por necessidade da gráfica da Abril, fechava às 19h do domingo, mas só seria impressa na segunda e distribuída na terça.
Como a maioria dos jogos terminava exatamente nesse horário em praticamente todos os campeonatos estaduais ou nacional, a revista não informava os resultados. A parte da cobertura e a atualidade dos fatos chegavam ao leitor frias ou incompletas. E como não era toda semana que aparecia um “empresário” árabe querendo comprar times inteiros, levou-se algum tempo até que as vendas empatassem com os custos.
Não houve tempo, porém, para que Cláudio de Souza esquentasse a cadeira de editor de “Placar”. Doze meses depois, Civita tinha para ele um novo desafio: expandir o departamento de quadrinhos da editora, a menina dos seus olhos. Finalmente, o faz-tudo da Abril voltava a cuidar de sua grande paixão.
Nos quatro anos seguintes, com ousadia, Cláudio literalmente revolucionaria o mercado de quadrinhos no Brasil. Enquanto as grandes concorrentes do mercado declinavam, a editora paulista triplicaria a tiragem e assumiria a posição de maior editora de gibis do país. Desbancou em vendas a Ebal, de Adolfo Aizen, e a Rio Gráfica Editora, de Roberto Marinho.
Ao assumir o posto, Cláudio finalmente cuidaria do que mais gostava no mundo editorial: as histórias em quadrinhos. E se encheu de entusiasmo novamente. Só não podia imaginar que aquela seria sua última missão como “Homem Abril”.