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Desenho feito por Paulo Mendes Campos |
E lá se vão 30 anos da morte de um gênio do futebol mundial. No dia 20 de janeiro de 1983, partiu para o céu Mané Garrincha. Literatura na Arquibancada destaca abaixo a crônica de um dos maiores escritores do país, Paulo Mendes Campos, botafoguense de quatro costados.
O texto faz parte do livro mais que recomendado “O gol é necessário – Crônicas Esportivas” (Editora Civilização Brasileira, organização Flávio Pinheiro).
No ano passado, fizemos por aqui algumas homenagens a Mané e que você, leitor, pode acessar, nos links encontrados no final deste artigo.
Outra dica interessante é um artigo do Instituto Moreira Salles, mantenedor da obra do escritor Paulo Mendes Campos: http://www.blogdoims.com.br/ims/garrincha-o-rimbaud-do-futebol-%E2%80%93-por-elvia-bezerra-e-julia-menezes/
Mané Garrincha
Por Paulo Mendes Campos
Quando ele avança tudo vale. A ética do futebol não vigora para Mané. O fair-play exigido pelos britânicos é posto à margem pelos marcadores, pelos juízes, pelas torcidas. Regras do association abrem estranhas exceções para ele. Uma conivência complacente se estabelece de imediato entre o árbitro e o marcador, o primeiro compreendendo o segundo, fechando os olhos às sarrafadas mais duras, aos carrinhos perigosos, aos trancos violentos, às obstruções mais evidentes. Quando esses recursos falecem, o marcador em desespero, sem medo ao ridículo, agarra a camisa de Garrincha. Aí o juiz apita a falta, mas sem advertir o faltoso: o recurso é limpo quando se trata de Garrincha.
“Todos os jogadores do mundo”, ensina professor Nilton Santos, “são marcáveis, menos seu Mané. Mané em dia de Mané só com revólver”. Nilton é o mais consciente dos fãs de Garrincha, costumando dizer que, se ainda jogou futebol depois dos trinta anos, foi por ser do mesmo time de seu Mané.
Quando Garrincha apareceu para treinar em General Severiano, a diretoria andava louca atrás dum ponta-direita. Nilton Santos, um pouco por comodismo, outro tanto por humorismo, marcava os candidatos à posição no grito. O ponta pegava a bola e, antes de conseguir dominá-la, já sabendo que andava por ali o melhor zagueiro do mundo, ouvia o grito: “Oi!”. Bastava para que a bola lhe fugisse, sobrando para pés afeitos a trabalhá-la.
Uma tarde apareceu para treinar um menino de pernas tortas. Já no vestiário o técnico Gentil Cardoso, rindo-se, chamara a atenção de todos para o candidato: aquele sujeito poderia ser tudo na vida, menos jogador de futebol. Começado o treino, lá pelas tantas uma bola sobrou para Garrincha. Nilton proferiu o grito de costume, mas o menino torto matou a bola com facilidade e ficou esperando. Ferido pela ousadia, Nilton partiu para cima do garoto com decisão (Já joguei contra ele: é uma extração rápida e sem dor). Talvez naquele momento estivesse em jogo não só a bola, mas o destino de Garrincha. Se Nilton o desarmasse e lhe aplicasse como corretivo à petulância duas ou três fintas, Gentil Cardoso não esperaria muito para enviar o novato sem jeito para o chuveiro. Apesar desse perigo, e a despeito de estar enfrentando um jogador da mais alta categoria, Mané escolheu o caminho da porta estreita: driblar Nilton Santos. Talvez pensasse: ou dou uma finta neste cobra ou volto para o trabalho mal pago da fábrica.
Só três vezes em sua carreira Nilton Santos levou drible entre as pernas: a primeira foi ali naquele instante. A turma que não perde treino ficou boquiaberta; o lance não consagrou o estreante, mas abriu um crédito de curiosidade para Garrincha. Seu destino estava salvo.
Quem levou Garrincha para o Botafogo foi Arati, depois de apitar uma partida em Pau Grande, 3º distrito do município de Magé. Tendo começado a chutar bola aos dez anos de idade, Garrincha não teve outro clube além do Pau Grande Futebol Clube e o Botafogo. Apesar de sua modéstia inacreditável, duas vezes seu Mané, aconselhado pelos outros, desconfiou que tinha futebol suficiente para tornar-se profissional. Uma tarde bateu em São Januário. Era então o Vasco um quadro de craques experientes, cobertos de glória, uma espécie de Academia de Futebol, sem perspectivas para estreantes. Garrincha uniformizou-se, mas não chegou a ser apresentado à bola vascaína. Meses depois foi parar no Fluminense, conseguindo treinar meio tempo, já na hora da penumbra e do cansaço de Gradim, o técnico, que não deu pelo acontecimento que passou à sua frente.
No Botafogo Garrincha estreou na mesma semana em que apareceu, jogando no time de baixo. No domingo seguinte, a dramática torcida botafoguense via entrar em campo aquele extrema de pernas desajeitadas. Há coisas que só acontecem ao Botafogo, resmungaram nas sociais; um jogador de pernas tortas, essa não. O adversário era o Bonsucesso. Já antes do término do primeiro tempo, Manuel Francisco dos Santos tomava conta da posição, correndo como um potro, batendo na bola com segurança, fintando com estilo próprio, cobrando escanteios dos dois lados, sendo que do lado esquerdo a bola descrevia uma curva não prevista pela geometria euclidiana e pelos arqueiros.
Em suma, apareceu feito, praticando um futebol pessoal e desconcertante, ao qual só falta o dom da cabeçada.
Não quero ser modesto em matéria de futebol: descobri de imediato esse mundo novo – Garrincha – com a intuição alvoraçada de todas as alegrias que dele me viriam. Senti Pelé e Garrincha à primeira vista. Esse orgulho ninguém me tira.
Transformado em ídolo duma parte da torcida alvinegra (os eternos bobocas continuavam a negá-lo), Mané seria um dos artilheiros do campeonato de 1953 e, sem dúvida, a revelação do ano. Sob pseudônimo, escrevi para a Revista da Semana uma reportagem, lembrando que o ponta botafoguense deveria pelo menos ser convocado para os treinos da seleção brasileira que iria disputar na Suíça a Copa do Mundo de 1954. Zezé Moreira não tomou conhecimento nem de minha reportagem, nem de Garrincha. Fomos eliminados no jogo contra a Hungria, após uma campanha de classificação sem brilho e sem brio.
Há pouco tempo, um amigo meu, tricolor cordial, perguntou a Garrincha se era verdade que o clube dele era o Fluminense. Não, sempre tivera mais inclinação pelo Botafogo mesmo. “Mas um repórter”, replicou o outro, “escreveu que você lhe confessou ser torcedor do Fluminense”. Garrincha se riu e contou que o jornalista tinha lhe pedido o favor de poder divulgar essa mentira, pois dependia dum furo esportivo para continuar no emprego. E seu Mané acrescentou: “Eu nunca fui muito de futebol não!”. É claro que começamos a rir.
Garrincha ilustrou seu ponto de vista: “Ué, vocês querem saber duma coisa? No último jogo daquela Copa que teve aqui no Rio, eu nem dei bola. Não ouvi nem rádio. Fui caçar passarinho. Rapaz, quando cheguei de tardinha lá em Pau Grande, levei um susto danado: tava todo mundo chorando. Pensei logo que fosse desastre de trem. Quando me contaram que o Brasil tinha perdido é que fiquei calmo e falei pro pessoal que era bobagem chorar por causa de futebol”.
Enquanto 200 mil brasileiros penavam no Maracanã, enquanto todo o Brasil carpia diante do rádio, Garrincha caçava passarinho nas capoeiras da Raiz da Serra. Friaça fazia o primeiro gol, uma rolinha caía morta. Schiafino empatava para os uruguaios, um tiziu levava chumbo. Gigghia enfiava a bola da amargura nacional entre Barbosa e a trave, Garrincha derrubava com um tiro uma outra garrincha.
Sim, foi um desastre de trem, o trem chamado Brasil descarrilou ao entrar na estação terminal; todos os brasileiros saíram gravemente feridos, menos Manuel Francisco dos Santos, o caçador que oito anos mais tarde arrasaria o plano quinquenal soviético para o futebol, destruindo depois o cartesianismo francês, comendo a Suécia impecável por uma perna. O caçador que doze anos mais tarde traria de novo para o Brasil a Copa Jules Rimet.
Um dia é da caça, outro do caçador. Nas horas vagas, seu Mané caça; nas horas de trabalho, é caçado. Foi caçando que ganhou o apelido de Garrincha com um N que o Aurélio não registra, mas que é também uma forma popular de designar a garricha ou garriça, ave feinha que os livros dizem pertencer à família dos troglotídeos, isto é, das cavernas.
Desde que a gente se coloca no próprio espaço, não reflete mais. Se tivesse que escolher os pensamentos que mais me instruem sobre o mundo e a vida, esse aforismo dos cadernos do pintor Georges Braque entraria na minha lista. A frase me vem muito à lembrança quando espio o fenômeno Garrincha. Não há paraíso terrestre melhor do que executar uma ação dentro do espaço que lhe é próprio. Não refletir mais, livrar-se da inteligência. Criar uma ação por uma fatalidade fácil. Dentro do nosso espaço.
A alegria do futebol de Garrincha está nisso: dentro do campo, ele se integra no espaço que lhe é próprio, não reflete mais, não perde tempo com a vagareza do raciocínio, não sofre a tentação dos desvios existentes no caminho da inteligência. Como um poeta tocado por um anjo, como um compositor seguindo a melodia que lhe cai do céu, como um bailarino atrelado ao ritmo, Garrincha joga futebol por pura inspiração, por magia, sem sofrimento, sem reservas, sem planos. O futebol requintadamente intelectual de Didi é sofrido e sujeito a todas as falhas do intelecto. Garrincha, pelo contrário, se suas condições físicas estão perfeitas, se nada lhe pesa na alma, é como se fosse um boneco a que se desse corda: não reflete mais. Garrincha é como Rimbaud: gênio em estado nascente. Se um técnico desprovido de sensibilidade decide funcionar como cérebro de Garrincha, tentando ser a consciência que lhe falta, isto é, transmitindo-lhe instruções concretas, lógicas, coercitivas, pronto – é o fim. O grande mago perde a espontaneidade, o espaço, o instinto, a força. Em vez do milagre, que ele sabe fazer, ensinam-lhe a fazer um truque sensato. Não pode haver maior tolice.
João Saldanha sabia que não há instrução possível para Garrincha. Se a virtude do Mané nada tem a ver com a lógica, não será através da lógica que lhe corrigiremos os possíveis defeitos. E defeitos e virtudes não são partes que se possam isolar em Garrincha, que escreve certo por linhas tortas. Suas pernas são os símbolos desconexos dessa ilogicidade criadora.
O jornalista Armando Nogueira tem uma teoria muito boa sobre o drible de seu Mané, apesar de Mario Filho não concordar com ele e comigo. “O drible”, diz Armandinho, “é, em essência, fingir que se vai fazer uma coisa e fazer outra; fingir, por exemplo que se vai sair pela esquerda, e sair pela direita. Pois o Garrincha”, conclui o comentarista, “é a negação do drible. Ele pega a bola e para; o marcador sabe que ele vai sair pela direita; seu Mané mostra com o corpo que vai sair pela direita; o público todo sabe que ele vai sair para a direita; seu Mané mostra mais uma vez que vai sair pela direita; a essa altura, a convicção do marcador é granítica: ele vai sair pela direita; Garrincha parte e sai pela direita. Um murmúrio de espanto percorre o estádio: o esperado aconteceu, o antônimo do drible aconteceu”.
Descobri há tempos uma graça espantosa nessa finta de Garrincha: às vezes o adversário retarda o mais possível a entrada em cima dele, na improvável esperança duma oportunidade melhor. Garrincha avança um pouco, o adversário recua. Que faz então? Tenta o marcador, oferecendo-lhe um pouco da bola, adiantando esta a um ponto suficiente para encher de cobiça o pobre João. João parte para a bola de acordo com o princípio de Nenê Prancha: como quem parte para um prato de comida. Seu Mané então sai pela direita.
Alguns artigos do Literatura na Arquibancada sobre Mané Garrincha:
“Celebrando Garrincha”
“Saudades de um Mané”
“Malandro é malandro e Mané é Mané”
“Mané e o sonho”