O Carnaval chegou. E a festa popular, ao lado do futebol, duas das maiores paixões do povo brasileiro, tem ligações históricas. É o que nos conta Laércio Becker, do Paraná, em uma pequena série de três reportagens especiais sobre as ligações entre o Carnaval e o futebol brasileiro.
Influências carnavalescas no futebol carioca
Por Laércio Becker
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Desfile da Beija-Flor, "O mundo é uma bola" |
É inegável que carnaval e futebol são manifestações conjuntas da identidade nacional (Damatta).
Nesse sentido, sempre são lembradas as influências do futebol no carnaval carioca.
A começar pelos inúmeros enredos compostos sobre temas futebolísticos – p.ex., O mundo é uma bola, da Beija-Flor, em 1986.
Também algumas escolas de samba tiveram origem em times de futebol.
P.ex., a GRES São Clemente foi fundada em 1961 a partir do São Clemente FC, surgido em 1953, e teve as cores (amarelo e preto) inspiradas não no time que lhe deu origem (azul e branco), mas no uruguaio Peñarol.
Também algumas escolas de samba tiveram origem em times de futebol.
P.ex., a GRES São Clemente foi fundada em 1961 a partir do São Clemente FC, surgido em 1953, e teve as cores (amarelo e preto) inspiradas não no time que lhe deu origem (azul e branco), mas no uruguaio Peñarol.
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Independente, time que originou a Mocidade Independente de Padre Miguel. |
Já a GRES Mocidade Independente de Padre Miguel – apesar da estrela na bandeira, que lembra o escudo da AA Portuguesa carioca – é originária do Independente FC, um time de várzea da Zona Oeste, da década de 50.
Aliás, a primeira Escola de Samba, a Deixa Falar, teve as cores inspiradas no América FC.
Mas aqui vamos tratar é da contra-mão. E, de preferência, de histórias bem antigas, de influências do carnaval no mundo do futebol.
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Lima Barreto |
Talvez o primeiro autor a intuir isso tenha sido, ironicamente, o grande adversário do futebol: Lima Barreto (ver nosso artigo “Contra o foot-ball”).
Na crônica “Bailes e divertimentos suburbanos”, publicada na Gazeta de Notícias de 07.02.1922, ele afirma que, em relação aos clubes dos “bairros elegantes”, a diferença é que, nos suburbanos, havia o costume de “festejarem a vitória sobre um rival, cantando os vencedores pelas ruas, com gambitos nus, a sua proeza homérica com letra e música da escola dos cordões carnavalescos. Vi isto só uma vez e não garanto que essa hibridação do samba, mais ou menos africano, com o futebol anglo-saxônico, se haja hoje generalizado nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto afiançar.”
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Gilberto Freyre |
A mistura do DNA inglês com o brasileiro, esboçada nesse trecho de Lima Barreto, é retomada por Gilberto Freyre (ver nosso artigo “Gilberto Freyre e o futebol”).
Em Sobrados e mucambos (1ª ed. de 1936), diz que a agilidade do mulato com os pés o habilita ao samba e ao futebol. No artigo “Foot-ball mulato”, publicado originalmente no Diário de Pernambuco, em 18.06.1938, ele também disse que o jeito brasileiro de jogar futebol era “dançado”, o que nos remete ao samba e ao carnaval.
No ano seguinte, na crônica “Brasil-Argentina”, Mário de Andrade também compararia o futebol brasileiro a um bailado. Não seria a ginga do jogador brasileiro uma influência carnavalesca? A refletir.
Antes do futebol, os cariocas se dividiam entre as chamadas “grandes sociedades carnavalescas”. Eram clubes em que, durante o resto do ano, os sócios se dedicavam a beber, jogar cartas e discutir política. Assim como os clubes de futebol, elas tinham apelidos, cores e fãs ardorosos. Falaremos das três maiores e mais famosas.
A primeira é o Clube Tenentes do Diabo, fundada em 31.12.1855 com o nome de “Zuavos Carnavalescos” e com as cores vermelho, branco, azul e preto. Dela participaram grandes romancistas da época, como Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida e Machado de Assis. Conhecida como Tenentes do Diabo a partir de 1861, mudou oficialmente de nome em 1904, quando resumiu suas cores ao vermelho e preto. Seus foliões eram chamados de “baetas”, nome de um cobertor de lã rubronegra, em alusão às cores do tecido adotado em suas fantasias. O símbolo (mascote), como não podia deixar de ser, era o diabo – aliás, a fantasia de diabo era a que predominava nos carnavais de antigamente, como relata Luís Edmundo.
A segunda grande sociedade é o Clube dos Democráticos, fundado em 19.01.1867, tendo por padroeira Nossa Senhora da Glória. Freqüentaram seus salões ilustres políticos como José do Patrocínio e Benjamim Constant. Suas cores eram verde, amarelo, preto e branco. Em 1894, reduziu para listras pretas e brancas. Os foliões eram chamados de “carapicus”, que é uma espécie de sardinha alvinegra.
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Clube dos Democráticos. (acervo Augusto Malta) |
A segunda grande sociedade é o Clube dos Democráticos, fundado em 19.01.1867, tendo por padroeira Nossa Senhora da Glória. Freqüentaram seus salões ilustres políticos como José do Patrocínio e Benjamim Constant. Suas cores eram verde, amarelo, preto e branco. Em 1894, reduziu para listras pretas e brancas. Os foliões eram chamados de “carapicus”, que é uma espécie de sardinha alvinegra.
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Clube dos Fenianos, 1934. |
A terceira grande sociedade é o Clube dos Fenianos, fundado em 07.12.1869, com o apoio de Rui Barbosa, Evaristo da Veiga, Quintino Bocaiúva e Silva Jardim, entre outros. Suas cores eram vermelho e branco e seus foliões em conhecidos como “gatos”. O apelido surgiu porque as mascotes do Clube eram bichanos que viviam espreitando pelas janelas da sede.
Vemos nesses clubes carnavalescos algumas características em comum com os de futebol. Em primeiro lugar, todos são clubes dedicados ao lazer. Em segundo lugar, além do nome, têm um apelido extensivo aos seus fãs e inventado pelos rivais – como os torcedores do Flamengo, apelidados de “urubus” pelas outras torcidas. Em terceiro lugar, os clubes carnavalescos tinham até mascote – como boa parte dos clubes de futebol, sendo que a dos baetas é igual à do América: o diabo.
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Fenianos, 1913. |
Em quarto lugar, os Democráticos tinham até padroeira – como o Flamengo adota São Judas Tadeu. Em quinto lugar, os clubes carnavalescos tinham seus “pufes”, que eram poemas surgidos a partir de 1877 que, entre outras coisas, procuravam exaltar seus próprios méritos – assim como os hinos oficiais e extra-oficiais dos clubes de futebol.
Mas o mais importante, em minha opinião, é a questão das cores. Os Tenentes do Diabo eram rubronegros, como o Flamengo. Os Democráticos eram alvinegros, como Vasco e Botafogo. E os Fenianos eram alvirrubros, como o América e o Bangu.
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Tenentes do Diabo, 1913. |
Não queremos, com isso, insinuar que a escolha das cores dos clubes de futebol foi feita com base nas cores dos clubes de carnaval. Quando o Flamengo mudou de azul e dourado para vermelho e preto, os Tenentes do Diabo ainda tinham quatro cores – e cogita-se que o Flamengo se inspirou no Jockey Club (ver nosso artigo “Camisas de clubes de cores diferentes”).
Quanto ao vermelho e branco, o América mudou para essas cores por sugestão de Belfort Duarte, inspirado nas cores da AA Mackenzie College, na qual ele havia jogado antes de se mudar para o Rio. Já o Bangu se inspirou nas cores do escudo do Southampton FC, ou nas de São Jorge, padroeiro da Inglaterra, cuja bandeira é uma Cruz de São Jorge (ver nosso artigo “As cruzes dos times de futebol”). Ou seja, nada a ver com os Fenianos.
O clube da colina adotou o preto dos “mares ignotos” e a faixa branca foi para representar a rota de Vasco da Gama para a Índia (ver o capítulo “Primeiras camisas com faixa diagonal”, em nosso livro “Do fundo do baú”). Para seu uniforme alvinegro listrado, o Botafogo FC buscou inspiração na Juventus de Turim (idem). O CR Botafogo, não sei em que se inspirou para suas cores, mas o fato é que foi fundado exatamente no ano em que os Democráticos adotaram o preto e o branco, portanto acho pouco provável – embora não impossível – alguma ligação nisso.
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Belfort Duarte |
Quanto ao vermelho e branco, o América mudou para essas cores por sugestão de Belfort Duarte, inspirado nas cores da AA Mackenzie College, na qual ele havia jogado antes de se mudar para o Rio. Já o Bangu se inspirou nas cores do escudo do Southampton FC, ou nas de São Jorge, padroeiro da Inglaterra, cuja bandeira é uma Cruz de São Jorge (ver nosso artigo “As cruzes dos times de futebol”). Ou seja, nada a ver com os Fenianos.
O único dos grandes clubes de futebol cuja combinação de cores destoa das usadas pelos clubes carnavalescos é o Fluminense. Como já dissemos no capítulo “Primeiras cisão, fusão, incorporação, troca de nome, de cores e de cidade”, do nosso livro “Do fundo do baú”, o Fluminense quase nasceu alvi-anil, mas acabou nascendo cinza e branco em 1902, mudou para grená, verde e branco em 1904, e se aventurou pelo laranja em 2001 (cf. nosso artigo “Camisas de clubes de cores diferentes”).
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Fluminense, 1906. |
Será que isso não reforçou a postura diferenciada que sempre teve o aristocrático tricolor das Laranjeiras? Interessante que, em 2011, o Fluminense lançou uma camisa três inteira grená com detalhes em dourado. Alguém diria: como se estivesse, mesmo que involuntariamente, tentando ocupar, no imaginário popular, o mesmo espaço dos três clubes alvirrubros da cidade – Fenianos, América e Bangu. Pouco provável, quase impossível, mas se alguém quiser prosseguir nessa hipótese, fique à vontade.
Antes de chegarmos à conclusão deste capítulo, precisamos mencionar que, na crônica “Rei Momo”, escrita em 1935, Mário de Andrade afirma que azul e vermelho “são as cores tradicionais da alegria brasileira”. Refere-se ao carnaval daquela época.
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Mário de Andrade |
Diz que a fama da combinação dessas cores vem das danças dos Congos e Gingas, dos Congados e Moçambiques, bem como das Cavalhadas, em que o azul representava os cristãos e o vermelho os mouros. Apesar de estender ao Brasil, será que estava tomando por base o carnaval paulista? De qualquer modo, o mais importante clube carioca rubroanil é o Bonsucesso FC, enquanto o maior clube paulista a combinar essas cores (e com o branco) é o Nacional AC.
Diante do que foi exposto, tudo indica que não houve influência dos clubes carnavalescos na escolha das cores dos clubes de futebol. Contudo, não custa especular que essas combinações de cores – rubronegro, alvinegro e alvirrubro – já estavam bem presentes na tradição cultural do lazer carioca e, por conseqüente, no imaginário popular. Não é de admirar, por isso, que tenham obtido tamanha popularidade, talvez no vácuo dessas grandes sociedades que, com o tempo, foram desaparecendo do cenário e dando lugar a outras manifestações populares, como os blocos e escolas de samba. O terreno já estava preparado. É uma hipótese a considerar.
Abaixo, os links para os outros dois artigos especiais de Laércio Becker, sobre “Carnaval e Futebol”.