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O Leão da Toscana

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Um “livraço”...Essa é a definição correta para “O Leão da Toscana” (Editora Zahar, 2012). E se você, leitor, achava que um esporte como o ciclismo não renderia uma “grande” história, está pra lá de enganado. Os irmãos canadenses Aili e Andres McConnon conseguiram com sua prosa empolgante narrar a “emocionante história do ciclista campeão que desafiou os nazistas na Segunda Guerra e inspirou uma nação”. As aspas formam o subtítulo da biografia de um verdadeiro herói: Gino Bartali.

O que seria preciso dizer mais do que as impressões de Elie Wiesel, escritor e Prêmio Nobel da Paz: “’Não serás omisso’ é um poderoso ensinamento bíblico. Este livro oferece um exemplo emocionante de coragem moral. Um cidadão simples, e grande atleta, decide se opor a uma ditadura política cruel e racista salvando judeus na Itália. Era tão difícil tornar-se um herói então? Era o necessário – o necessário para permanecer humano.”

Abaixo, Literatura na Arquibancada destaca o texto encontrado nas “orelhas” de “O Leão da Toscana”.

Gino Bartali

“Poucas biografias são tão comoventes, inspiradoras e surpreendentes como a do italiano Gino Bartali, um dos maiores atletas do século XX e um herói secreto da Segunda Guerra Mundial.

Resultado de quase dez anos de pesquisa impecável, O Leão da Toscana acompanha a história de Gino desde a infância pobre em Ponte a Ema – vilarejo próximo a Florença –, onde descobre a paixão pelo ciclismo.  É numa velha bicicleta, comprada com dinheiro suado, que o garoto franzino começa a descobrir a vida sobre duas rodas.

Aos 24 anos, já bicampeão do Giro d’Italia, impressiona o mundo com uma vitória espetacular no Tour de France de 1938 e é transformado em ícone do esporte internacional.

Pressionado pelos fascistas, Bartali – católico devoto e contrário ao regime – recusa o posto de garoto-propaganda de Mussolini e é boicotado e acusado de antipatriota pelo governo. Com a entrada da Itália na guerra e a ocupação do país pelos nazistas, ele abriga a família de um amigo judeu em uma casa alugada e toma parte em ações secretas e extremamente arriscadas. Simulando estar em treinamento, aproveita sua fama e o vão do quadro da bicicleta para transportar identidades falsas que irão salvar as vidas de centenas de perseguidos.


Ao fim da guerra, Gino tenta recomeçar a carreira. Tratado com desdém pela imprensa italiana, fracassa no Tour de 1947, entrando no de 1948 desacreditado e subestimado. Chega a hora de provar por que é conhecido como “O Leão da Toscana”.

Narrada de modo eletrizante, esta é a história épica de coragem, persistência, humildade e redenção de um homem que nunca aceitou ser chamado de herói, mas cujos atos seguem inspirando gerações.”

Abaixo, Literatura na Arquibancada reproduz fragmentos de um dos capítulos da obra. Mas não qualquer fragmento. Nele, encontramos parte da narrativa empolgante sobre a forma que Gino Bartali envolveu-se na “resistência” durante a Segunda Guerra Mundial. Não deixe de ler o livro, pois o final é ainda mais surpreendente.

O círculo dos falsificadores
Por Aili e Andres McConnon


(...)

Gino falava a respeito de qualquer coisa, menos da guerra. Podia passar horas analisando a estratégia usada em uma corrida anos antes ou contando suas últimas ideias sobre a melhor alimentação antes de um treino. Seus rivais, contudo, constituíam seu assunto favorito, e, em 1943, isso significava Fausto Coppi, o presunçoso jovem que se tornara um sério competidor naquelas últimas corridas na Itália antes de a guerra ficar mais séria. Coppi parecia ser um dos pouquíssimos ciclistas capazes de enfrentar metodicamente os ataques em staccatode Gino, com uma fluidez inabalável que não se deixava capturar. Inevitavelmente, nessas corridas de treinamento, Gino jurava que iria ganhar o Tour de France outra vez. E calaria a boca daqueles críticos na comunidade ciclística que, ele supunha, começavam a espalhar o boato de que seu tempo já passara, que o chamavam de Il Vecchio, o Velho, um “vovô [que tinha de ser] levado para dar uma volta de vez em quando”.


Mas Coppi estava fora da Itália havia mais de seis meses, mandado para a África em uma das fracassadas campanhas militares de Mussolini. Nem o Tour poderia parecer mais remoto. Cinco anos depois da vitória de Gino, não era mais do que o sonho de um passado distante, anterior à guerra. E assim, nos raros momentos de silêncio em que treinava sozinho, sem parceiros, Gino lutava contra um crescente sentimento de desesperança. Acreditava que estava desperdiçando os “anos mais férteis” para conquistar as principais honras do ciclismo e ganhar os prêmios em dinheiro que seriam críticos para sustentar a família. Quaisquer que fossem seus planos para o futuro, eles minguavam a cada mês que se passava sem corridas.

Depois de 120 quilômetros, Gino chegou a Terontola, onde tinha um pequeno trabalho a fazer. Terontola era uma aldeia toscana típica, um aglomerado de prédios nas cores ocre e castanho, mas tinha uma particularidade incomum: era o lugar de baldeação entre a estrada de ferro norte-sul, a principal da Itália, e uma linha regional que seguia para o sudoeste, para Perugia, Assis e Foligno.


A cerca de quatrocentos metros da estação, Gino parou perto de uma ponte. Estava adiantado, de modo que fingiu estar ocupado examinando a bicicleta. Mas, enquanto mexia nela, observava os trilhos. Esperava um trem que passava por Terontola vindo do norte e que estaria trazendo refugiados judeus ou outros antifascistas fugindo para o interior ou para o sul da Itália. Aquela estação era particularmente perigosa, porque muitas vezes tinham de fazer baldeação, arriscando-se a ser detidos ou capturados ao atravessar as plataformas.

Os refugiados judeus temiam as estações de trem porque ficavam expostos a muitos inimigos. Como explicou um judeu italiano: “Era onde havia maior probabilidade de ser pego. Por toda parte, uniformes nazistas e fascistas e só Deus sabe quantos agentes do serviço secreto. O que mais chamava a atenção era a polícia militar alemã. Eram uns demônios altos, que caminhavam aos pares, impecavelmente vestidos em seus bem-passados uniformes cinzentos, com as mãos enluvadas atrás das costas e as botas bem-engraxadas batendo em ritmo lento e sincronizado. Uma placa de metal polido, com a palavra Feldgendarmerie gravada, pendia no pescoço por uma corrente, e ela balançava no peito enquanto eles vigilantemente ziguezagueavam em meio à multidão”.


Gino conhecia esses perigos, e assim, quando o trem finalmente surgiu ao longe, montou na bicicleta e entrou na cidade, parando no bar em frente à estação da estrada de ferro. A notícia de sua chegada logo se espalhou pela estação e por toda a cidadezinha. A presença em Terontola de um dos mais famosos astros do esporte italiano era um acontecimento palpitante, incomparável a qualquer outro. O dono do bar, que era amigo de Gino, cumprimentou-o; outro amigo, o alfaiate da cidade, e que trabalhava ali perto, ofereceu a Gino um sanduíche deprosciutto. Em volta, quem estava na estação se empurrava, procurando aproximar-se de Gino. Muitos queriam lhe dar um abraço ou um amistoso tapinha nas costas. Outros ficariam honrados em pagar um espresso para seu ídolo ou pedir um autógrafo.

Num instante, o barzinho ficou lotado, e Gino foi convidado a falar à barulhenta aglomeração. Disse algumas palavras amistosas de saudação e ouviu de volta aplausos ruidosos. Toda essa comoção extraordinária chamou a atenção de vários soldados na estação, alguns dos quais provavelmente bem que gostariam de conseguir um autógrafo também. Acredita-se que essa distração planejada tenha dado cobertura de alguns preciosos minutos para os refugiados e dissidentes que tentavam evitar alemães e fascistas ao trocar de trem.

Quando tudo acabou, Gino montou na bicicleta e rumou para a cidade de Perugia, onde planejava passar a noite em uma igreja local.


(...)

Ao alvorecer, Gino acordou na igreja perugiana em que havia passado a noite. Fez sua calistenia matinal, como em quase todos os dias desde 1936, e examinou a bicicleta. As distâncias entre o selim, o guidão e os pedais eram sempre as mesmas; qualquer diferença, ainda que de apenas um centímetro, poderia provocar distensão muscular ou dor durante uma corrida. Quando se deu por satisfeito com a bicicleta, montou e saiu da igreja. Colocou o boné de ciclista e partiu para Assis. No horizonte, o sol começava a se erguer. O mundo dormia, mas nessa hora do dia havia uma calma esperança que Gino sempre prezara. Era o momento em que as corridas longas começava, que o ciclista esperava, com nervosa animação, para verificar se as centenas de quilômetros de treino acumuladas em suas pernas tinham sido suficientes.

Saindo de Perugia, primeiro Gino foi devagar, “esquentando o motor”, como dizia, procurando perceber como seu corpo se sentia. Já haviam se passado quase seis meses desde a última competição, uma corrida reconhecidamente medíocre de tempos de guerra, mas suas pernas continuavam notavelmente fortes. A estrada desenrolava-se à sua frente como uma fita, verdes e prateados, com seus glóbulos maduros ainda sendo transformados em ouro líquido por algumas poucas pessoas de coragem. Gino forçou um pouco. O coração se acelerou, e sentindo calor ele tirou o abrigo e ficou só de camiseta. A estrada se nivelou, oferecendo-se como sedutora tentação. Gino forçou um pouco mais, deslizando pelos campos da Úmbria, mais selvagens e mais acidentados que os de sua Toscana natal. Finalmente, começou a sentir os contrafortes da cadeia montanhosa dos Apeninos sob as rodas. Mas continuava a manter uma reserva; uma subida de verdade só podia ser conquistada quando o último grama de força entrava em jogo. Gino olhou em volta e tentou avaliar a que distância estava de seu destino – e então olhou para o relógio e atacou.


À sua frente, a cidade de Assis destacava-se na paisagem, um aglomerado de mosteiros, conventos e igrejas cor-de-rosa e branco, empoleirado nas encostas do monte Subasio. Importante e austera, muito da história de Assis remontava ao século XIII e a seu morador mais importante, o monge e santo católico Francisco de Assis, reverenciado por seus ensinamentos de caridade e simplicidade. A ordem monástica de Francisco se espalhara pelo mundo, transformando o sonolento lugar em um importante centro de atividade religiosa. Gino conhecia a cidade: antes da guerra ele havia visitado suas igrejas, quando ganhara de presente do bispo local um cálice para a capela de sua casa. Naquele dia, porém, não viera a Assis em peregrinação. Estava ali para ver frei Rufino Niccacci.

Encontrou-o no mosteiro de São Damião, um grandioso prédio de pedra cor de aveia logo depois dos muros da cidade, num bosque de oliveiras e ciprestes. Gino se encaminhou para a pesada porta de madeira e bateu. De sua cela, Niccacci ouviu e correu para abrir e deixá-lo entrar.

“Você vai pegar uma gripe, Bartali!”, exclamou, olhando com surpresa para o ciclista de calções e camiseta e convidando-o a entrar.

“Treze quilômetros de Perugia aqui em um quarto de hora não está mau, não é mesmo?”, replicou Gino com um toque de fanfarronice, tirando o boné. Niccacci conduziu o ciclista para uma sala privada no mosteiro.


Depois de se certificar de que estavam sozinhos, Gino passou a trabalhar na bicicleta, com Niccacci observando enquanto ele retirava sua carga preciosa. Primeiro afrouxou o parafuso que prendia o selim, removeu-o e retirou o esconderijo de fotografias e documentos, que vinham enrolados e ocultos nas partes ocas da bicicleta. Niccacci pegou os documentos, desenrolou-os delicadamente e escondeu-os em um armário no qual se guardavam relíquias sagradas, no oratório do mosteiro.

Voltando-se para Gino, convidou: “Venha tomar café”. Caminharam para o refeitório dos monges, um salão de teto abaulado como uma catacumba, forrado de madeira marrom e pedras creme. Sentaram-se a uma das mesas compridas e gastas sob uma pintura quase em tamanho natural retratando a crucificação, e Niccacci serviu café de cevada torrada. Era uma refeição simples, mas Gino apreciou. Enquanto sorvia sua bebida, contou que o cardeal lhe dera instruções para ir mais ao sul, falar com um padre que tinha contato com alguns contrabandistas que talvez estivessem dispostos a ganhar um dinheiro transportando refugiados judeus pelas linhas de batalha até o território controlado pelos aliados. Na volta ele pararia de novo em Assis.

Quando terminaram, Niccacci acompanhou o hóspede até uma porta lateral. A conversa se encaminhou para o ciclismo, enquanto Gino colocava de novo o boné. “Um dia serei campeão outra vez. Vou mostrar a eles quem é Il Vecchio”, prometeu audaciosamente. Com isso, montou e partiu. 


Niccacci manteria esse encontro e os que se seguiram tão secretos quanto possível. Mesmo assim, em pelo menos uma ocasião foram flagrados por um monge que não estava envolvido com a rede. Aconteceu logo depois que Gino chegou com uma de suas entregas. Por acaso, Pier Damiano, na época com 22 anos de idade, estava saindo de sua cela quando viu o ciclista em pé na porta lateral. Confuso, Damiano parou e observou o estranho, reconhecendo imediatamente o rosto e a figura musculosa que já havia visto em inúmeros jornais.

Niccacci fez Damiano jurar segredo sobre a visita de Gino. Era essencial que a rede que eles haviam montado continuasse a funcionar sem interrupção, porque a chegada de Gino entregando fotografias só podia significar uma coisa: em Florença, o cardeal Dalla Costa estava precisando de mais documentos de identidade falsificados.

Sobre os autores:
Aili McConnon formou-se nas universidades de Princeton, Cambridge e Columbia. Ela colabora com publicações como Business Week, The New York Times, The Wall Street Journal e The Guardian. Vive em Nova York.

Andres McConnon formou-se em história pela Universidade de Princeton e colaborou como pesquisador para diversos livros.

Aili e Andres são irmãos.


Literatura na Arquibancada recomenda ainda os links abaixo, um filme raro sobre Gino Bartali:




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