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Como uma sinfonia de Stravinsky

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No dia 14 de abril de 2012 o Santos Futebol Clube comemorou 100 anos de vida. Por aqui, já mostramos lançamentos de livros, filmes e faltava um texto, ou melhor, uma crônica que pudesse homenagear de alguma forma o time da Vila Belmiro.

Curiosamente, um flamenguista apaixonado é quem assina a crônica sobre um momento mágico do jogador que, inevitavelmente, em qualquer lugar do planeta, associa sua camisa ao Santos Futebol Clube.

Tudo bem que Pelé tenha feito gols inesquecíveis no mundo inteiro, mas aqui, no espaço de reflexões do Literatura na Arquibancada vale o instante que pode ser transformado em poesia.

É o que faz o jornalista e poeta Hélio Alcântara em um texto escrito originalmente, em 1998, na revista Caros Amigos. Helinho, como é conhecido pelos amigos, mantinha uma coluna na revista e para esta homenagem ao centenário do Santos FC fez pequenas alterações para adequá-lo à circunstância. Helinho fala da beleza de um gol do maior jogador de todos os tempos: o “Deus” Pelé, representante máximo do Peixe.

O jogo em questão, Santos x Portuguesa, ocorreu pelo Campeonato Brasileiro de 1973, em 04/11/73, no estádio do Pacaembu. A Lusa abriu 2x0 no 1º tempo. Mas, logo no início do tempo complementar, o Peixe fez o 1º. Na sequência, Pelé endoidou e acabou com o jogo. Pena que o vídeo baixo onde você pode conferir essa verdadeira obra-prima de gol, não seja o que ficou na memória de Helinho: “o narrador Walter Abrahão, enlouquecido, pede, aos berros, para o repórter Ely Coimbra invadir o campo e entregar o "motorádio" (prêmio de melhor em campo) a ele”. Não tem problema Helinho, sua prosa associada à narração do vídeo feita por Fernando Solera, na TV Bandeirantes, também serve para relembrarmos um instante precioso neste centenário do Santos.

UMA BOLA-TAMBOR NO PEITO DE DEUS
Por Hélio Alcântara

Dia destes li algo que alguém escreveu a respeito do Pelé. Dizia que a matada no peito do "Negão" tinha som. Esse alguém escreveu o que sempre achei. Aliás, um dia vivi o que foi escrito, mais precisamente, em novembro de 1973, quando minha irmã Moninha e eu, então adolescentes, fomos ao Pacaembu.

A gente vivia no Pacaembu, e naquela tarde de domingo o Santos enfrentava a Portuguesa. Não lembro se era primeiro ou segundo tempo, mas, lá pelas tantas, a Lusa, que tinha um timaço, estava ganhando por 2x0Mas, como todo santista naquela época, a confiança era parte integrante de nós mesmos. Não tinha essa história de "não vai dar". No final das contas, sempre dava. E saíamos do estádio com pelo menos um empate.

Os minutos foram se passando, e, de repente, o Santos destruiu a Lusa: 3x2de virada, e com um golaço do Pelé (fez dois naquela tarde). Mas, o que me deixou com o peito dilacerado de tanta emoção foi a matada que ele deu dentro da área, antes de a bola explodir dentro do gol.

A bola foi alçada por Clodoaldo, que estava na lateral esquerda, próximo à linha do meio-de-campo. Pelé, de costas para o gol, se preparou e subiu muito, abandonando o chão. E subiu como se o fizesse em câmera lenta. Atrás dele, grudadinho, subindo junto, um zagueiro da Portuguesa. Quando a bola alcançou o peito generoso de Deus, ele, lindo, feroz, já iniciara o movimento da virada. Seu corpo girava levemente no espaço, como se tivesse o dom de construir nova forma em pleno voo. O zagueiro, atrás dele, parecia saber o que estava acontecendo, mas, por força da gravidade, começou a ver o próprio corpo descer em direção ao gramado. Deus, não. Permaneceu no ar, virando o corpo escultural lentamente. A bola, em silêncio, O acompanhava como se só Dele. Ao tocar o chão, Pelé se apoiou na perna direita, e sem deixar que a bola chegasse até lá embaixo, desferiu-lhe um pontapé com o pé esquerdo.


                                          Santos 3 x 2 Portuguesa - 04/11/1973

Devastada por tanto amor, a bola beijou as redes do gol da Portuguesa. O zagueiro não viu, o goleiro só olhou - Pelé já tinha enxergado quando estava de costas. O Pacaembu explodiu em êxtase, os narradores enlouqueceram e quem não era santista aplaudiu ressabiado, quase paralisado. Afinal, aquilo era obra do demônio, não de Deus!

Minha irmã e eu, nas arquibancadas baixas, pertinho do alambrado do simpático Pacaembu, assistimos a tudo como convidados privilegiados, com a respiração suspensa desde o instante em que a bola encontrou o peito de Pelé. Não tivemos tempo de realizar o que se passou, mas, naqueles longos e dourados segundos em que a jogada se deu, fomos capazes de sentir a pulsação de tudo o que era belo na vida.

                                         Stravisnky, Danse Infernale from the Firebird 
                                         (Francesco Piemontesi, piano)

Naquele domingo, Deus matou a bola no peito-tambor com a secura de um golpe surdo e a doçura do amor. Como uma sinfonia de Stravinsky. O som expelido dali se ajeitou dentro de mim, agora é meu. E é uma das traduções da beleza divina que hoje, raramente, se instala nos gramados.

Viva um século de Peixe! Viva o eterno Pelé! Viva Edu! Viva Ganso e Neymar!

Sobre Hélio Alcântara:

É jornalista, poeta e ex-chefe do Departamento de Esportes da TV Cultura. 

É autor dos livros "Viveiro" (poesia, 1981) e do romance juvenil, "Ponta de Lança- A história de um brasileiro que foi jogar bola nos Estados Unidos e descobriu o mar" (Editora Ysayama, 2000). 


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