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Segundo a FIFA, o Flamengo tem a maior torcida de futebol do mundo |
Como se formou a maior e mais apaixonada torcida brasileira no futebol? Ser Flamengo é transcender as quatro linhas do gramado e das arquibancadas dos estádios. As razões históricas para que esse fenômeno acontecesse é explicado neste belíssimo artigo escrito pelo historiador Rafael Gota, flamenguista, evidentemente. Ele é um dos criadores de um site que já virou sucesso, o “Imagens Históricas”, onde você, leitor, pode e deve acompanhar tudo o que rola por lá http://www.imagenshistoricas.com.br/uma-nacao-em-vermelho-e-preto-porque-o-flamengo-e-maior-torcida-mundo/. Literatura na Arquibancada agradece a permissão de reprodução na íntegra do artigo abaixo.
Uma nação em vermelho e preto:
Porque o Flamengo é a maior torcida do mundo
Por Rafael Gota
No dia 28 de outubro foi comemorado o dia do torcedor do Flamengo, isto é, do flamenguista. Uma das poucas torcidas que possuem esta honra de ter um dia especial em sua homenagem, o Clube de Regatas do Flamengo é considerado por muitos intelectuais um fenômeno social e cultural de grande relevância para o Brasil. Com seus quase 40 milhões de torcedores estimados, o Flamengo é maior que a população de não poucos países, sendo considerado pela FIFA o clube que mais possui seguidores em todo o planeta.
Mas você sabe por que a torcida do Flamengo se tornou tão grande? Pelo menos desde os anos 1940 seria possível precisar o clube como a maior torcida do Brasil, o que possibilitaria identificar as origens de sua grandeza e de seu crescimento ainda durante suas primeiras décadas de existência. Vão aqui algumas hipóteses para tal fato.
Segundo o jornalista Mário Filho, na primeira década do século XX, o Flamengo era um clube de regatas que contava com apenas 60 sócios, sendo considerado pouco atraente para a atenção das multidões. Essa condição viria a mudar a partir de 1912, quando se iniciaram as atividades futebolísticas por meio de ex-jogadores do Fluminense que se filiaram ao Flamengo e formaram seu primeiro time de futebol. A importância deste fato não é pequena, se considerarmos que a equipe do Fluminense havia se sagrado campeã carioca em 1911. Logo no terceiro campeonato que disputou, em 1914, o Flamengo veio a obter seu primeiro título nos gramados.
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Nos anos 1940 e 1950 o Flamengo já era tido como a maior torcida do país. |
Apesar de ser considerado à época um clube elitista e constituído por homens da alta sociedade, o Flamengo se diferenciava dos outros times existentes no Rio de Janeiro por contar com um grande número de jovens, tanto entre os quadros do remo quanto do futebol.
Conta ainda Mário Filho que, fosse nas vitórias nos gramados ou no mar, havia sempre um reco-reco na garagem da antiga sede na Praia do Flamengo, o 22, e uns barris de chopp Brahma encomendados do quase vizinho “Bar e Restaurante Lamas” – local de nascimento e fundação do clube. As vitórias então obtidas pelo clube eram festejadas em sua sede e nas ruas do entorno com danças entre os integrantes de suas equipes, o que não raramente escandalizava os setores mais conservadores da sociedade carioca de então, pouco afeitos aos bailes espontâneos formados por homens a dançar pelas ruas da região.
Com o tempo, as festas rubro-negras adquiriram fama na cidade, o que levou a imprensa carioca da época – nas páginas de periódicos como o Jornal do Brasil e o Jornal do Comércio– a noticiar a ocorrência das mesmas às vezes em tom crítico, por considerarem estes festejos como forma de perturbação da “ordem urbana e paz social”. Se para alguns estas manifestações festivas eram vistas negativamente, para outros, principalmente entre homens e mulheres menos abastados, estas festas eram a oportunidade de curtir uma espécie de “carnaval fora de época” do “bloco rubro negro” que saia a partir do Largo do Machado. Começava a se construir uma imagem de irreverência e desbunde para o Flamengo.
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O acanhado Estádio da Rua Paissandy, 1º local de jogos do Flamengo |
Também ali próximo ficava o primeiro estádio do clube, o Estádio da Rua Paissandu. Na verdade, este espaço, construído para a realização de atividades desportivas informais, não era do Flamengo, mas sim uma doação da prefeitura carioca. Como a equipe não tinha local para mandar seus jogos, esta localidade passou a ser utilizada pelos quadros do futebol do clube, criando a inusitada situação de um time que era praticamente obrigado a fazer seus treinamentos em praça pública e em contato direto com quem passava ou fazia uso deste Estádio.
O caminho entre o 22 e o campo levava pouco mais de 15 minutos, o que muitas vezes servia para uma espécie de “aquecimento” do time. Segundo Alberto Borgeth – fundador do futebol do flamengo -, seria a partir deste caminho e do contato com moradores, passantes pela região e os outros futebolistas informais do campo da Rua Paissandu que se encontraria a explicação para a popularização do Flamengo. Tanto no bloco rubro-negro quanto no seu primeiro estádio, pode-se dizer que o Flamengo foi quase que obrigado a ir pra rua e tomar contato com seus fãs diretamente, o que diferenciava, por exemplo, do Fluminense, que além de realizar suas cerimônias festivas dentro dos luxuosos salões das Laranjeiras, também treinava em espaço reservado.
Ainda no final da década de 1910, o 22 era conhecido como a “República Paz e Amor”, por atrair jovens de diversos locais para beber e tocar no final de tarde. Além dessas atividades, ficaram igualmente famosas as anedotas ali realizadas pelos flamenguistas. Entre estas, ficou conhecido um caso aonde o chefe de polícia chegou ao local para prender todo mundo por causa de uma reclamação feita por senhoras de idade. Segundo estas senhoras, sempre que passavam para pegar o bonde que atendia a região, uma bomba de cabeção de nego estourava, o que sempre as deixava assustadas. Conta-se igualmente que o Convento localizado ao lado do 22 teria sido vendido em razão dos hábitos dos flamenguistas de tomarem banho com poucas roupas no quintal, o que, segundo as irmãs que ali residiam, as levavam a terem “sentimentos e fogos desconhecidos”. Porém, quando o convento foi acometido por um incêndio em 1919, foram os mesmos rubros negros que salvaram as pobres velhinhas – fato publicado na primeira página do tradicional Jornal do Comércio.
Desde a década de 1920 o Flamengo passou a se notabilizar por aquilo que muitos de seus torcedores mais se orgulham até hoje: a mística sobre a camisa rubro-negra, o famoso manto sagrado. Nesta década, não teriam sido poucas as ocasiões, como a ocorrida no campeonato carioca de 1927, na qual o time do Flamengo, considerado tecnicamente inferior aos demais times, os vencia na base da superação e da raça. Dizia nestes tempos, na belíssima escrita de Mario Filho que “o Flamengo não precisava de time para conquistar um campeonato. Bastava-lhe a camisa”. “O clube da camisa”, termo largamente difundido então, se tornaria a equipe preferida dos mais sofridos, daqueles que, por suas próprias vidas de privações, se identificavam diretamente com a mística de superação que o time foi adquirindo ao longo do tempo. Teria começado assim a surgir a identificação entre o Flamengo e as populações mais pobres do Rio de Janeiro.
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Os saudosos "geraldinos" rubro negros, irreverência, alegria e paixão marcavam este espaço |
Na década de 1930, através da pena de cronistas desportivos como Mário Filho, veio a surgir a mística do Fla X Flu, fruto da divisão existente entre os clubes da cidade quanto à participação na profissionalização do futebol. Enquanto Vasco, América e Botafogo disputavam a Liga Amadora de Futebol, Flamengo e Fluminense optaram por disputar aquele que seria o primeiro torneio profissional do esporte no país, em 1933. Para atrair o público para o torneio profissional, Mario Filho e outros apoiadores do torneio começaram a fazer grande publicidade em favor de Flamengo e Fluminense, o que levou este clássico à condição de duelo maior do futebol carioca de então. Nas penas destes cronistas, se construiu a imagem de um Fluminense como clube do requinte, refinamento e elitismo, enquanto que ao rubro-negro se criou a imagem de time do povo e das massas.
Contribuiu igualmente para o processo de popularização do Flamengo nas primeiras décadas do século XX a política de contratação de atletas negros para os quadros futebolísticos do clube. Nestes anos, atletas negros como Fausto, Leônidas da Silva e Domingos da Guia vieram a defender as cores do Flamengo, criando um contraste marcante entre a equipe e outros times da capital. Mesmo o Vasco, primeiro grande clube carioca a ter jogadores negros em seus quadros, tinha menos jogadores negros em sua linha. Se o Flu já era conhecido como “pó de arroz”, pelo famoso caso do jogador que se travestiu de pó-de-arroz para esconder sua etnia em campo, o Flamengo se notabilizou como sendo o “pó de café”, dado que, mesmo mantendo um clube com um quadro social elitista e dos mais caros, o time adquiria uma imagem de popular.
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Usado em tom pejorativo pelas torcidas adversárias, a torcida rubro negra tem no canto "Festa na Favela" um dos cânticos mais entoados nos estádios. |
O último fator a ser considerado neste processo de popularização do Flamengo se encontra no rádio. No auge da Era do Rádio, as transmissões futebolísticas nacionais transmitiam apenas os jogos das equipes do Rio de Janeiro, fato este que contribui até hoje para que todos os clubes cariocas tenham presença maciça de torcedores no Nordeste, Norte e Centro-Oeste do país. Foi nestes anos que, nas transmissões da Rádio Nacional, o famoso locutor e flamenguista ferrenho, Ary Barroso veio a cunhar nos jogos do Flamengo que narrava um dos mais conhecidos bordões do time: “o mais querido do Brasil”.
Reflexo dessa popularização, em 1942 a torcida do Flamengo levava literalmente o carnaval para dentro dos estádios. Seria esta a inventora da, podemos dizer assim, primeira torcida organizada do futebol brasileiro: a Charanga do Flamengo. Foi depois da Charanga que marchinhas de carnaval passaram a ser tocadas durante os jogos intercaladas com hinos dos clubes. Foi também por causa da Charanga que as camisas dos times, até então de uso exclusivo dos atletas, passaram a vestir os torcedores, que outrora não se vestiam para uma partida de futebol muito diferente de uma ocasião social como o teatro e bailes.
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A Charanga do Flamengo, o carnaval invade os estádios |
Dessa forma, o Flamengo desde seus primórdios construiu pra si uma imagem de clube irreverente, democrático, popular, quase uma entidade pública que abarcava indivíduos totalmente diferentes dentro de uma mesma bandeira. Vale ressaltar que se hoje o time rubro negro é um dos mais vencedores do Brasil, na década de 1940 não era o grande campeão do RJ, por isso, as vitórias fizeram parte do processo, mas não são o centro da explicação para o crescimento vertiginoso da torcida rubro negra neste momento.
Sobre Rafael Gota:
27 anos, carioca, graduado e mestre em História pela PUC Rio, atua como educador de turismo pedagógico e professor voluntário na Oscip PECEP. Foi eleito pela Fundação Estudar e Veja.com um dos 50 “Jovens Inspiradores” em 2012. Atua como criador de conteúdo.