Quantcast
Channel: Literatura na Arquibancada
Viewing all articles
Browse latest Browse all 307

Moacyr Scliar e o futebol

$
0
0

Você já ouviu falar no “Estádio do Pau Seco Futebol Clube”? E que o “grande” estádio acabou demolido para a construção de um cemitério vertical? Esses são os cenários principais do divertido romance escrito por ninguém menos do que Moacyr Scliar, um dos maiores nomes da literatura brasileira que nos deixou no dia 27 de fevereiro de 2011. Scliar nasceu no dia 23 de março de 1937.


A história (verídica) de Scliar revela sua verdadeira devoção por um pequeno clube do futebol riograndense, terra do autor: o Esporte Clube Cruzeiro, de Porto Alegre. Está lá, no romance uma frase que pode definir bem sua paixão pelo futebol: “Se eu morrer na sexta-feira quero ser enterrado no sábado, na hora do jogo”. Se essa declaração for entendida apenas como narrativa de seu personagem, na vida real Scliar esclarece: “Eu tinha a paixão pelo Cruzeiro no genoma”. Tudo bem que a ficção permite os exageros nas interpretações dos fatos da vida real, mas Scliar gostava sim do futebol, tanto que escreveu também diversos artigos nas colunas que assinava em jornais brasileiros.


No “mundo real”, Scliar declarou que seu maior ídolo no futebol era Garrincha. Ele também colaborou com contos em diversas publicações, uma delas no “O mundo é uma bola: crônicas, futebol e humor”.

Mas sem nenhuma dúvida, “A Colina dos Suspiros” (Editora Moderna, 1999), é a obra-prima que Moacyr Scliar deixou para a literatura esportiva. Uma obra que merece estar na estante de qualquer amante do futebol "jogado" fora dos gramados.

Resenha
A Colina dos Suspiros

Esporte Clube Cruzeiro, quarto colocado
no Gauchão de 1970.

“Com um texto bem-humorado, em A Colina dos Suspiros, de 1999, o autor brinca com a paixão dos brasileiros pelo futebol: se eu morrer na sexta-feira quero ser enterrado no sábado, na hora do jogo. Esse amor pelo clube que está presente nas grandes cidades com os seus jogadores famosos mobiliza também o coração dos torcedores dos times de pequenas cidades, distantes e humildes.

Até a presença do cartola, figura tão criticada no meio futebolístico, se faz representar na cidade de Pau Seco: o fazendeiro da região praticamente sustenta o time, e nenhuma decisão é tomada sem o seu consentimento.

Estádio da Montanha,
na Colina Melancólica, em Porto Alegre.

A ironia do texto cativa o leitor atento, e a venda do estádio do Pau Seco para a construção de um cemitério verticalizado, ponto turístico da cidade, recebe do autor tratamento primoroso. A escolha do nome "Pirâmide do Repouso Eterno", eufemismo para cemitério, seduz os habitantes da cidade, pois atenderia à vaidade humana na hierarquização dos sepultamentos: grande jogada de marketing da personagem, lance do mais fino humor de Scliar.

Enredo

Cemitério João XXIII

Futebol, intriga, paixão e mistério são os ingredientes desta história. A história é verídica. Nos anos 70, o Esporte Clube Cruzeiro, de Porto Alegre, vendeu seu estádio e o lugar se tornou um cemitério (João XXIII). Entre os torcedores do time figura o escritor gaúcho Moacyr Scliar, que inspirado no episódio escreveu um romance divertido. Justamente sobre uma equipe decadente cujo campo vai abrigar a Pirâmide do Eterno Repouso. Entre os tipos pitorescos que recheiam a trama, o mais estranho é Rubinho, craque com potencial de gênio, atormentado por assombrações.


A ascendência russa e a cultura judaica são decisivas na obra de Moacyr Scliar, assim como os conhecimentos, experiências e vivência de médico sanitarista. Admiração confessa pelos escritores Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Franz Kafka e, na música, por Mozart, Philip Glass e Chico Buarque. Futebol é o tema de A colina dos suspiros, do gaúcho Moacyr Scliar, e a pequena cidade de Pau Seco é o cenário.

Da realidade à ficção, o autor apresenta neste romance a pequena cidade de Pau Seco, com dois clubes de futebol que se digladiam há muito tempo. Futebol em Pau Seco é o que move ou paralisa a cidade. O estádio fica junto do cemitério.


Ali, o Pau Seco Futebol Clube, à beira da falência, cede seu estádio para a construção de um cemitério. A salvação está em Rubinho, um dos trabalhadores da obra, que se revela um extraordinário jogador.

Rubinho, a possível salvação dos paussequenses, é o jogador-revelação da cidade, que sofre uma humilhação pública, pois tem medo de marcar gol em frente ao túmulo do falecido ídolo Bugio. Desaparece, e só tem um desejo - vingança. Trata-se de um momento decisivo em sua vida. Com humor e sutileza, questões éticas, políticas, sociais, familiares, amorosas, o bem e o mal são discutidos.


O cemitério volta a ser estádio. Aí aparece de tudo: coronel todo-poderoso com seus mandos e desmandos, pobre que sai do anonimato para a riqueza sem preparo, maracutaias e espertezas. Esta narrativa terá surpreendentes desdobramentos e também por isso, fascina o público jovem ou, melhor, de qualquer idade. Com humor leve, essa saborosa crônica cativa pelo ótimo texto, só interrompido pelas risadas que desperta”.

Fonte:

Esporte Clube Cruzeiro, de 1952.

Para se entender a paixão de Scliar pelo seu Cruzeiro de Porto Alegre, basta ler o texto que ele deixou para explicar sua ausência em um dos raros fatos históricos do clube de coração. 


As citações sobre os jogos Brasil x Costa do Marfim e Brasil x Portugal, se devem ao fato de a crônica ter sido escrita durante a Copa do Mundo de 2010.





O renascimento do Cruzeiro

Equipe campeã da segundona do Gauchão.

Ser membro da Academia Brasileira de Letras é, naturalmente, uma distinção, mas tem os seus inconvenientes, como descobri na semana passada: tendo ido ao Rio para a reunião da ABL, perdi um acontecimento histórico: ao derrotar o Brasil de Farroupilha, o Esporte Clube Cruzeiro de Porto Alegre garantiu seu retorno à primeira divisão do futebol gaúcho, após 32 anos de ausência. Lamento que meu falecido pai, José Scliar, cruzeirista fanático (e um dos 18 torcedores que, segundo o folclore porto-alegrense, o Cruzeiro tinha) não haja vivido esse momento glorioso. Foi meu pai quem me introduziu ao futebol: eu tinha a paixão pelo Cruzeiro no genoma.

Recepção dos torcedores do Cruzeiro,
no retorno da excursão de 1960.

E tinha de ser uma paixão mesmo. A trajetória do Cruzeiro era um tanto desconcertante. Terceira força do futebol gaúcho, o azar no entanto nos perseguia. Mas, e isso ajuda a entender o “pathos” cruzeirista, não era um azar constante. 

De vez em quando, e da forma mais inesperada, o time ganhava de goleada, renovando nossa fé. Chegamos ao auge quando o Cruzeiro tornou-se o primeiro time gaúcho a excursionar pelo Velho Mundo, o que aconteceu duas vezes, em 1953 e 1960. Na primeira excursão, o Cruzeiro conseguiu até empatar com o Real Madrid e voltou com o autoatribuído título de Leão da Europa.


E aí vinham as surpresas desagradáveis. A última partida a que assisti, sempre ao lado do meu pai, foi realizada no estádio do time da CEEE, o Força e Luz, na Rua Alcides Cruz. Quem perdesse ficaria em último lugar. Mas, para o Cruzeiro, bastava um empate, e, quando terminou o primeiro tempo, estávamos ganhando de 3 a 0. No fim, perdemos por 4 a 3.

Ao Cruzeiro, devo a inspiração para A Colina dos Suspiros, livro destinado a jovens, que foi traduzido em vários países. O título nasceu da localização do estádio do clube, que ficava na Colina Melancólica, ali onde estão os cemitérios porto-alegrenses. Convenhamos que não era um lugar muito alegre, e o estádio acabou sendo vendido para o Cemitério João XXIII.


O clube recebeu parte do pagamento em jazigos perpétuos, que valiam uma soma apreciável e foram usados na compra dos passes de jogadores. Quando ouvi um desses jogadores dizendo, na Rádio Gaúcha, e com muito orgulho, que seu passe havia sido adquirido por seis túmulos, dei-me conta de que aquele era o time ideal para um ficcionista, e a partir daí nasceu a história.

Agora, o Cruzeiro mostra sua bravura, retornando à primeira divisão. Nas palavras de Jayme Sirotsky, presidente emérito da RBS, o time, como a mitológica fênix, renasceu das próprias cinzas. E tenho certeza de que, assim fazendo, inspirou nossa seleção na vitória sobre Costa do Marfim. “Se o Cruzeiro pode, nós também podemos”, deve ter dito Dunga. Viva o Cruzeiro.

Fonte:
Jornal Zero Hora, 22/06/2010



"Começa a partida Brasil x Portugal. Pedro Álvares Cabral apossa-se da pelota e avança, dribla um índio, dribla dois, dá um passe para Martim Afonso de Souza, este aciona Mem de Sá, surge Tiradentes, tenta interceptar, não consegue, mas aí aparece dom Pedro I, brada ‘Independência ou Morte’, domina a jogada, passa a dom Pedro II, que deixa para Deodoro da Fonseca, este estende a um presidente, a outro, a democracia chuta, e é gol! Gol do Brasil!”.
Fonte:

Triste mesmo é saber que não teremos mais a criação de contos saborosos de Scliar. Abaixo, Literatura na Arquibancada destaca dois deles:

“Namoro e futebol”


Eles se conheceram na escola, onde cursavam a mesma classe. E foi o legítimo amor à primeira vista. Uma semana depois já estavam namorando, e namorando firme. Eram desses namorados que fazem as pessoas suspirar e dizer bem baixinho: meu Deus, o amor é lindo. Ele, 17 anos, alto, forte, simpático; ela, 16 uma beleza rara. Logo estavam se visitando em casa. Os pais de ambos davam a maior força para o namoro e antecipavam um casamento no futuro: os dois formavam o casalzinho ideal. Inclusive porque gostavam das mesmas coisas: ler, ir ao cinema, passear no parque.

Mas alguma coisa tinha que aparecer, não é mesmo? Alguma coisa sempre aparece para perturbar mesmo o idílio mais perfeito.

Foi o futebol.


Ele era maluco pelo esporte. Jogava num dos times da escola, no qual era o goleiro. Um grande e esforçado goleiro, cujas defesas muitas vezes arrancavam aplausos da torcida.

Ela costumava assistir às partidas. No começo nem gostava muito, mas então passou a se interessar. Um dia disse ao namorado que queria jogar também, no time das meninas da escola. Para surpresa dela, ele se mostrou radicalmente contrário à idéia. Disse que futebol era coisa para homem, que ela acabaria se machucando. Se queria praticar algum esporte, deveria escolher o vôlei. Ela ficou absolutamente revoltada com o que considerou uma postura machista dele. Disse que iria começar a treinar de qualquer jeito.


Começou mesmo. E levava jeito para a coisa: driblava bem, tinha um chute potente. Só que aquilo azedava cada vez mais as relações entre eles. Discutiam com freqüência e acabaram decidindo dar um tempo. Uma notícia que deixou à todos consternados.

Passadas umas semanas, a surpresa: o time das meninas desafiou o time em que ele era goleiro para uma partida.

Ele tentou o possível para convencer os companheiros a não jogar com elas. No fundo, porém, não queria se ver frente a frente com a namorada, ou ex-namorada. Os outros perceberam isso, disseram que era bobagem e o jogo foi marcado.


Ele estava tenso, nervoso. E não podia tirar os olhos dela. Agora tinha de admitir: jogava muito bem, a garota. Era tão rápida, quanto graciosa e, olhando-a, ele sentia que, apesar das discussões, ainda gostava dela.

De repente, o pênalti. Pênalti contra o time dos garotos. E ela foi designada para cobrá-lo. Ali estavam os dois, ele nervoso, ela absolutamente impassível. Correu para a bola – no último segundo ainda sorriu – e bateu forte. Um chute violento que ele, bem posicionado, defendeu, sob aplausos da torcida.


O jogo terminou zero a zero. Eles se reconciliaram e agora estão firmes de novo. Mas uma dúvida o persegue: será que ela não chutou a bola para que ele fizesse a brilhante defesa? Não teria sido aquilo um gesto, por assim dizer, de reconciliação?

Ela se recusa a responder a essa pergunta. Diz que um pouco de mistério dá sabor ao namoro. E talvez tenha razão. O fato é que, desde então, ela já cobrou vários pênaltis. E não errou nenhum.

Fonte:
Folha de S.Paulo, 26/09/2005

Impedimento


De todas as mulheres que existem no mundo, eu tinha de me apaixonar logo por uma juíza de futebol, pensava ele, amargurado. A verdade, porém, é que ela tinha todas as qualidades possíveis e imagináveis: era linda, era simpática, era inteligente. Mas, acima de tudo - e isso segundo suas próprias palavras -, era juíza. E como juíza agia, inclusive na cama. Quando achava que ele estava sendo apressado, ou grosseiro, pegava o apito que estava sempre sobre a mesa de cabeceira e apitava: impedimento.

Impedido ele está quase sempre. Sua única esperança: um dia, engolfada pela paixão, ela esquecerá de apitar. E ele então marcará o grande gol de sua vida.



Fonte:

Para saber mais sobre Moacyr Scliar, acessar:
  

Viewing all articles
Browse latest Browse all 307