Entre os milhares de “loucos” corinthianos que decidiram embarcar para o Japão e torcer pela conquista do título mundial estavam quatro amigos: Dante Grecco Neto, Antonio Marcos Abrahão Junior, André Luiz Pereira da Silva e Celso Unzelte.
A “aventura” do quarteto transformou-se no livro "Vai, Corinthians! (Que nós vamos atrás...)" (Maquinária Editora). Histórias reais e bem humoradas que mostram a relação de paixão do corinthiano com o Timão.
Um deles, em especial, não tem nada de “louco” pelo Corinthians. Celso Unzelte transcende a “qualificação”. A história abaixo, publicada em “Vai, Corinthians!”, demonstra os antecedentes que Celso carrega no sangue e todas as justificativas que o levaram ao Japão (se é que precisava de alguma para ver o Corinthians Campeão Mundial). Literatura na Arquibancada recomenda a leitura de uma entrevista com ele publicada por aqui (http://www.literaturanaarquibancada.com/2011/11/um-louco-por-futebol.html)
Quem somos nós
Por Celso Unzelte
Tobogã, setor mais popular do Pacaembu, 4 de julho de 2012. Com dois golaços em cima dos argentinos do Boca Juniors, Emerson Sheik acaba de proclamar nossa independência americana. Ao meu lado, entre a imensa maioria alvinegra dos 37.959 pagantes, estavam meu filho Daniel, de 8 anos, e Dante Grecco, velho amigo na vida e nas arquibancadas. Quando, em 1977, o Corinthians fez sua primeira (e frustrada) tentativa de ganhar a Libertadores, eu não conhecia o Dante. O Daniel, obviamente, ainda não havia nascido, até porque eu mesmo tinha apenas 9 anos, quase a mesma idade que ele tem hoje.
Lá em casa, futebol já era o assunto principal, o prato do dia, fartamente servido pelo meu avô, o seu Paulo, são-paulino desde os tempos do Paulistano, e pelo meu pai, Dario, este sim corinthiano até a medula, desde 1935. Meu pai acompanhou todo o jejum de títulos de 1954 a 1977 e sofreu com o Santos de Pelé. Quando mais jovem, era capaz de “chorar pelo Corinthians”, segundo o testemunho insuspeito da minha mãe, Luíza, e das irmãs dela, Duca e Lita. Mas quem disse que isso me comovia? Eu era um “cê-dê-efe”, um “ferrinho”, um nerd, de acordo com a linguagem que se usa hoje. Futebol, para mim, era uma das coisas mais chatas do mundo. Roubava a atenção do meu pai nos fins de semana e só a devolvia quando já era noite de sábado, de domingo, às vezes de ambos os dias. Era por isso que eu preferia passar meu tempo lendo, principalmente histórias em quadrinhos.
Naquele ano mágico de 1977, porém, muita coisa iria mudar na minha vida. Tornou-se cada vez mais difícil continuar não gostando de futebol, a ponto de isso atrapalhar meu relacionamento com as outras crianças. “Ele não sabe nem a diferença entre um arremesso lateral e um escanteio”, diziam meu irmão, Paulo Roberto, também corinthiano, e um primo um ano mais velho que eu, Samuel, palmeirense, toda vez que eu tentava entrar no papo deles. O pior é que ambos estavam certos, porque eu não sabia nada de futebol, mesmo! Então, tratei de saber, pelo caminho que considerava mais fácil: o Manual do Zé Carioca, personagem de Walt Disney. Um livro ilustrado que por meio do meu mundo (o dos quadrinhos) me ensinou tudo sobre outro que eu precisava conhecer (o do futebol).
Estarei mentindo se disser que me lembro de alguma outra coisa daquela primeira campanha corinthiana na Libertadores além do meu avô são-paulino torcendo (contra, é claro) diante de sua televisão em cores, um luxo para a época, nas derrotas do Timão para o El Nacional e o Deportivo Cuenca, ambas no Equador. É que isso aconteceu entre abril e maio daquele ano, e minha relação com a bola só começou mesmo alguns meses depois. Mais precisamente em outubro, época em que a obsessão do Corinthians era outra: decidir em três jogos contra a forte Ponte Preta o título de campeão paulista, que não ia para o Parque São Jorge havia mais de 20 anos.
Nada me lembro, também, do primeiro jogo daquelas finais, vitória por 1 a 0, gol de Palhinha marcado com a cara no rebote de uma defesa do goleiro Carlos, da Ponte Preta, em uma noite de quarta-feira. Mas a segunda partida, disputada em uma bela tarde de domingo em que bastaria mais uma vitória para, enfim, o Corinthians ser campeão, ah, essa eu acompanhei na casa da tia Duca. Seu filho Alberto, meu primo, é quem havia me emprestado o Manual do Zé Carioca. Quase doze anos mais velho que eu, ele era uma das 146.082 pessoas que foram ao Morumbi para estabelecer o até hoje imbatível recorde de público daquele estádio. Não sem antes deixar uma bandeira alvinegra pendurada na janela da casa. Vaguinho fez Corinthians 1 a 0. Aquele mar de bandeiras que a televisão já havia mostrado na entrada do time em campo e mostrou novamente na hora desse gol eu só conseguiria rever anos depois, graças ao milagre do youtube. Por muito tempo, tais imagens permaneceram apenas em minha memória, como um devaneio de infância, exagero dos meus olhos de menino. Não eram, e isso pode ser comprovado no endereço http://www.youtube.com/watch?v=ABpgASkn6H4.
Aquela, sim, eu me lembro de ter sido a primeira partida de futebol que de fato acompanhei torcendo durante os 90 minutos, ainda que intercalando a leitura do Manual do Zé Carioca e a preocupação com as certeiras cobranças de falta de Dicá, o craque da Ponte Preta.Em uma delas, lá pela metade do segundo tempo, Dicá, como eu temia, de fato acabou empatando o jogo. Depois, foi a vez do artilheiro Ruy Rei — outro perigo! — virar para a Ponte, 2 a 1. Meu primeiro jogo como corinthiano praticante, minha primeira decepção, minha primeira certeza de que na próxima vez tudo ia ser diferente. E aquela próxima vez estava marcada para logo, apenas quatro dias depois, a noite da quinta-feira, 13 de outubro de 1977.
Com o passar dos anos, tem-se tornado cada vez mais difícil explicar para as novas gerações por que aquele título, afinal conquistado com o famoso gol de Basílio e ultimamente rotulado como apenas mais um “paulistinha”, ainda é tão importante para nós, os corinthianos acima dos 40 anos. É que naquele tempo, ainda tão distante do uso dos computadores e dos celulares, das viagens rápidas e de outras benesses da globalização, nosso mundo era nosso bairro, nossa cidade, no máximo nosso Estado. Não seria exagero, portanto, dizer que no desabafo daquela conquista, ao ser o melhor de São Paulo novamente (ou pela primeira vez, aos olhos de grande parte de seus torcedores, muitos deles já homens feitos que ainda não tinham visto seu time ser campeão), o Corinthians foi também, de certa forma, campeão do mundo. Do nosso mundo. Daí a festa indescritível, o espetáculo de imagens que não me sai da memória e que já defini mais de uma vez como uma Copa do Mundo em preto e branco.
Assistimos ao jogo em casa, a família toda reunida em frente ao televisor colorido do meu avô, mais uma vez “ponte-pretano desde criancinha”. Juro que, durante a maior parte daquela partida, eu consegui me concentrar lance a lance. Cheguei a discutir com meu avô na hora em que Ruy Rei, da Ponte Preta, foi expulso e o velho insinuou que o adversário estaria vendido. Na hora do gol salvador, porém, quando faltavam menos de nove minutos para o fim, eu, criança dispersa que ainda era, montava um castelinho de papel no tapete da sala. Daquele momento, lembro-me apenas do pé de meu pai esmagando meu castelinho antes de sair correndo para o quintal, a fim de comemorar. Em vez de reclamar pelo brinquedo estragado, fui atrás dele. E nunca mais voltei.
De certa forma, no campo das relações humanas, acho que o Corinthians me salvou, e a ele sou grato até hoje. De lá para cá, muita coisa que aconteceu na minha vida teve a ver não só com o clube como com o futebol em geral. Inclusive minha profissão, jornalista, a ponto de ter escrito vários livros sobre o esporte e o time do meu coração — o principal deles, o Almanaque do Timão, relatando detalhes sobre todos os jogos (desde o primeiro, em 10 de setembro de 1910), jogadores e técnicos da história corinthiana. Certa vez, resumi essa relação em forma de versos (dos poucos que ousei cometer em toda minha vida), originalmente publicados no livro oficial do Centenário do clube e que reproduzo aqui:
Quisera eu, como o Corinthians, ter 100 anos
Só para ter visto o velho Neco
E as viradas, os golaços do Teleco
Para pegar o bonde rumo à Ponte Grande, ao Parque São Jorge, ao Pacaembu
Para ver as jogadas e rezar as mandingas do Pai Jaú
Para vibrar com os gols do Cláudio, do Luizinho, do Baltazar
Para também me sentir seguro a cada defesa do Gilmar
Para ter mais lembranças dos meus tempos de menino
E poder recordar melhor o futebol do Rivellino
Mas só tenho 42 anos e acompanho o Corinthians há 33
Suficientes para ter visto tudo o que conto agora a vocês
Basílio libertando todo um povo, em 77
O calcanhar do Doutor Sócrates, um ano depois
A Ponte caindo de novo em 79 — em vez de um só título, agora eram dois!
(Pausa para um descanso, entre 80 e 81)
O bi da Democracia, em 82 e 83
O Santos, sem Pelé, agora virando freguês
O Timão de 87, indo da lanterna até a final
O gol do garoto Viola em Campinas — simplesmente sensacional!
O primeiro Brasileiro, pelos pés do Tupãzinho
Cada vez mais títulos, primeiro com o Neto, depois com o Marcelinho
As conquistas “casadinhas” com a Copa do Brasil
E também aquelas avulsas, multiplicando as “tradições e glórias mil”
A torcida sempre com o time, indo bem ou indo mal
O Corinthians cada vez mais paulista, mais brasileiro, mais mundial
Até mesmo a maior tristeza eu acho que compensou
Só pra ver meu filhinho no campo, gritando comigo:
“O Coringão voltou”
Trinta e cinco anos depois que tudo isso começou para mim, foi meu filho o maior companheiro em busca da conquista inédita da Libertadores, já que minhas filhas, Carolina, de 15 anos, e Beatriz, de 10, são são-paulinas, assim como minha mulher, Patrícia. Por isso, costumo dizer que a minha casa é o único lugar no mundo em que a torcida do São Paulo é maior que a do Corinthians. Só pode ser a tal lei do eterno retorno, para alegria do meu avô Paulo, esteja onde estiver. Ele morreu aos 89 anos, em setembro de 1986, não sem antes ter ouvido pelo rádio o primeiro tempo de uma goleada do São Paulo sobre o Sampaio Corrêa, do Maranhão.
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Da esquerda para a direita, os três filhos de Celso. |
Vai ver, é tudo culpa minha, mesmo. O fato é que desde pequena a Carolina teve que se acostumar a dividir a atenção do pai com o futebol — e com o Corinthians. Principalmente na época da primeira edição do Almanaque do Timão, que levou cinco anos até ser concluído, os últimos três, de 1997 a 2000, emprestados de sua mais tenra infância. Quando menor, ela costumava dizer coisas como “Cadê o papai? Foi trabalhar? Maldito Corinthians!” (mesmo nas vezes em que o Timão não tinha nada a ver com a história). Ou então: “Papai, eu sou ‘dicolor’” (ela não sabia ainda nem pronunciar direito a palavra, mas já se dizia ‘tricolor’...) “Mas eu sou amiguinha de você, tá bom?” Não posso culpá-la. Já a Beatriz, embora hoje negue, “nasceu corinthiana”, como registrei nos agradecimentos da segunda edição do Almanaque do Timão, de 2005. Naquele mesmo ano, porém, quando ela estava com pouco mais de dois de vida, o São Paulo ganhou sua terceira Libertadores. Beatriz, então, viu a mãe e a irmã comemorando pela casa com uma toalha vermelha, branca e preta. Gostou da brincadeira, foi atrás das outras duas e também nunca mais voltou, como já havia acontecido comigo em relação ao corinthianismo do meu pai.
Daniel, no entanto, parece mesmo ter “visto a luz”, como costumo dizer todas as vezes em que um filho de corinthiano também se torna corinthiano. Sempre me senti muito à vontade sendo pai de duas meninas. Por isso, toda vez que alguém, ao ver as diferenças de idade e de sexo entre meus filhos, insinua que eu “fui tentando um menininho até conseguir”, faço questão absoluta de corrigir: “Menininho, não! Eu fui tentando é um corinthiano”. Que assim nasceu, predestinado, desde o parto. Ao me entregar o garoto no colo e jogar no lixo as luvas que havia usado, um dos médicos, que sequer me conhecia e havia permanecido calado ao meu lado durante todo o processo, resolveu sentenciar:
— Mais um corinthiano no mundo!
Feliz, só pude responder:
— Doutor, o senhor arriscou alto. Mas acertou em cheio!
Daniel não tinha mais que 2 anos quando ao ser perguntado, principalmente em festas, por que era corinthiano como o pai, sempre respondia: “Eu nasci assim”. Eu, por minha vez, ao ser perguntado se meu caçula era corinthiano, falava: “Foi feito para isso”. Apesar de frequentar estádios desde os tempos da Série B, quando tinha apenas 4 anos de idade (eu só comecei aos 10, e ele vive tirando sarro de mim por causa disso), a Libertadores de 2012 representou para o Daniel o que o Paulista de 77 havia representado para mim: uma espécie de iniciação vitoriosa ao corinthianismo praticante. Juntos, estivemos presentes em quatro dos sete jogos realizados em São Paulo, dos 2 a 0 na estreia em casa, contra o Nacional do Paraguai, à redenção final diante do temível Boca. Para conseguir os ingressos, tornei-me até Fiel Torcedor, pois não podia nem queria usar minha credencial de jornalista para levá-lo junto comigo.
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Celso e os filhos |
Daquela Libertadores, a gente só se arrepende, mesmo, dos jogos em que não fomos. No 1 a 0 sobre o Cruz Azul, do México, acabamos convencidos em cima da hora pelas são-paulinas Patrícia, Carolina e Beatriz de que era “melhor assistir pela TV, em casa, comendo pipoca”. Não estivemos presentes, ainda, na goleada por 6 a 0 sobre o Deportivo Táchira, da Venezuela, porque afinal “o Coringão já estava classificado”, como fazia questão de informar e reinformar o próprio Daniel, sempre com o regulamento e a situação de cada campeonato na ponta da língua. Também não estávamos no Pacaembu no 1 a 1 contra o Santos que garantiu a vaga na decisão, mas aí foi meu bom senso de pai que falou mais alto: “Em jogo que tem duas torcidas, não! É muito perigoso ir ao estádio”. Por ele, no entanto, nós teríamos ido até mesmo à Vila Belmiro, na primeira partida das semifinais.
Mesmo dos jogos fora de casa, aqueles que acompanhamos apenas pela televisão, temos alguma história pra contar. Como o da estreia na Libertadores, quando, até os 49 minutos do segundo tempo, o time perdia por 1 a 0 para o Táchira, na Venezuela. Mais um daqueles gols sem querer que o Corinthians costumava sofrer na Libertadores. Na hora em que o adversário marcou mais um gol, cheguei a abandonar a sala, xingando, e ir para a cozinha. Só fiquei sabendo que o lance havia sido anulado (e justamente!) por impedimento porque o Daniel correu atrás de mim para avisar. De volta à sala, porém ainda descrente de que o Corinthians poderia alcançar um resultado melhor com aquele futebol que vinha apresentando, comecei a insistir para que meu filho fosse dormir mais cedo. Afinal, ele estuda de manhã e para quem tem de acordar às 6 horas qualquer tempo de sono ganho já é lucro, ainda mais em um jogo que terminou perto da meia-noite. Foi ali que recebi uma das maiores lições de perseverança (e de corinthianismo) da minha vida:
— Eu não vou. Você pode ir, mas eu não vou dormir. Você não me fala sempre que corinthiano tem que acreditar até o fim? Então, eu sou corinthiano e vou torcer até o fim.
E foi já no fim que houve aquela falta perto da área. Enquanto Alex ajeitava a bola para a cobrança, Daniel me pediu:
— Vem, pai. Vamos fazer uma corrente, ficar de mãos dadas, em pé, aqui na frente da televisão, pro Coringão empatar.
E ali ficamos, em pé, de mãos dadas, à espera de um milagre. Que veio.
Depois que a bola viajou, eu só consegui ver alguém subindo para cabecear. Pensei que fosse o Élton, mas era o Ralf. Quando finalmente foi possível enxergar pela televisão que a bola havia batido na rede antes de voltar para dentro do campo, nós dois imediatamente nos olhamos. Antes mesmo do nosso grito — que só não acordou os vizinhos porque eles também estavam acordados, gritando junto —, pude verificar a mais pura expressão de alegria que já havia visto no rosto de meu filho desde que ele havia nascido. Ali começava uma aventura que, para mim, só iria terminar do outro lado do mundo, dez meses depois.
Nos 3 a 0 sobre o Emelec, do Equador, que garantiram a classificação para as quartas de final contra o Vasco, Daniel estreou no Tobogã — segundo suas próprias estatísticas, “o último setor do estádio que faltava para a gente ver jogo juntos”. Foi debaixo do bandeirão que anuncia, orgulhoso, “Uma Nação com Mais de 30 Milhões de Loucos” que ele me confessou: “Eu nunca mais quero sair daqui”. Na saída do Pacaembu, me intimou: “Pai, quando a taça vai chegar ao Memorial do Corinthians? Liga pro David, que cuida de lá, e pergunta o dia e a hora, porque eu quero ir ver”. De nada adiantou explicar que ainda teríamos mais seis jogos pela frente até realizar aquele sonho. Desde ali, Daniel já estava convicto da conquista.
Fizemos de tudo para estar presentes também no segundo jogo contra o Vasco, aquele inesquecível 1 a 0, gol de Paulinho, em que o goleiro Cássio e o Pacaembu inteiro realizaram o milagre coletivo de hipnotizar Diego Souza, obrigando-o a perder um gol certo, mesmo depois de caminhar com a bola desde o meio do campo, sozinho, durante intermináveis 6 segundos e 22 centésimos. Foi o Daniel, também, quem leu no jornal Lance! que, para aquele jogo, ainda seriam vendidos uns poucos ingressos de numerada, a exorbitantes 400 reais (mais 200 pela meia-entrada dele) no domingo pela manhã, no Parque São Jorge. Lá fui eu acordar mais cedo e encarar a fila em um dia que deveria ser reservado para o descanso, mas no qual ainda iria trabalhar até às 11 horas da noite. É claro que valeu a pena. Quando eu, dadas as circunstâncias daquela partida dramática, já estava até conformado com a decisão por pênaltis que se aproximava, olhar perdido no contraste da garoa fina contra a luz que vinha dos refletores, foi o Daniel, uma vez mais, quem se encarregou de me trazer de volta à realidade, com um chacoalhão e o grito:
— Pai, acorda! O Paulinho vai marcar... Goooooooooooool!!!!!!
Olhos arregalados, boca entreaberta, cabelos loiros espetados, as duas mãos espalmadas pressionando as bochechas. A expressão dele naquele momento tão especial que compartilhávamos me lembrou a foto clássica do ator mirim Macaulay Culkin no filme Esqueceram de Mim.
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Daniel, filho de Celso, no melhor sono do mundo. |
Para a decisão em casa contra o Boca, o Daniel já estava credenciado como menor não pagante, via site do Corinthians, desde antes do primeiro jogo da final, na Bombonera, aquele em que Romarinho entrou em campo só para empatar. O problema, agora, era arranjar um ingresso do Tobogã para que um adulto — no caso, eu — pudesse acompanhá-lo. As chances não eram das maiores, mas mesmo assim acordamos cedo no dia em que a venda pela internet seria liberada, a partir do meio-dia. Às 9h30 da manhã, já estávamos nos revezando diante do computador, conectados ao site do Fiel Torcedor e atualizando a página seguidamente por duas horas e meia. Às 12h02, apareceu um boleto para o pagamento do meu ingresso que, no entanto, logo depois, sumiu. Às 12h08 o site informou que todos os ingressos estavam esgotados. Quem nos salvou foi justamente o Dante, que já havia assistido junto com a gente o jogo contra o Emelec e tinha garantido o ingresso dele para a decisão com o Boca. Ao longo de todo aquele processo, trocávamos informações por telefone, na base do “e aí? Conseguiu?”. Agora, ele vinha com sábias palavras:
— Deixa diminuir o número de acessos, volta no site e você vai ver que o boleto está lá para pagar. Se ele apareceu uma vez, vai estar lá.
Apareceu, mesmo. À noite, com o ingresso já garantido, na hora em que coloquei o Daniel na cama para dormir, suas últimas palavras naquele dia atribulado, proferidas antes que eu apagasse a luz do quarto, foram:
— Que bom que a gente conseguiu os nossos ingressos, hem, pai? Eu ainda não estou acreditando...
Na verdade, eu também não acreditava até a véspera da decisão, quando chegou até mim, via internet, uma mensagem que enfim deu a exata dimensão do fato. Assinada por seis das maiores torcidas organizadas do clube, ela dizia: “Você que vai ao jogo foi escolhido entre os 33 milhões de corinthianos. Faça a sua parte, não pare de cantar!”
Em retribuição a tamanha sorte, tratei de fazer tudo para que aquela fosse uma noite inesquecível. O jogo só começaria às 21h50, mas perto das sete da noite já estávamos entrando no estádio. Eu com minha camisa 10 de 1977, autografada pela maioria dos heróis daquela epopeia. O Daniel com a camisa listrada do Ronaldo que eu mesmo lhe havia dado no Natal de 2009. O Dante com sua igualmente inseparável camisa retrô número 8, do herói Basílio. Propositalmente, deixei o carro em um prédio da Avenida Paulista e seguimos, eu e o Daniel, para encontrar o Dante nas imediações do Pacaembu, em procissão com outros corinthianos. Nada menos que 3,2 quilômetros a pé, que repetiríamos felizes na volta, só para sentir melhor o clima em ambas as ocasiões. Em um dos portões da entrada do estádio, a moça encarregada de checar o documento de identidade com o nome dos menores credenciados em uma lista falou para o meu filho:
— Ih, Daniel... O seu nome não está aqui, não.
Sorrindo, expliquei para ela que nessa brincadeira o Daniel já não caía mais, de tanto que os fiscais do Pacaembu a haviam feito com ele nos outros jogos. Mas a moça respondeu, mais séria, enquanto corria os olhos pela lista novamente:
— Só que dessa vez é verdade. O nome dele não está aqui, não...
Não podia ser. O próprio Daniel havia feito o cadastro pelo site do Corinthians e eu, por medida de segurança, tinha tentado fazer novamente, até receber a mensagem “número de documento já cadastrado” e ficar mais tranquilo. Achei estranho não fornecerem nenhum tipo de comprovante, mas já havia sido assim no jogo contra o Emelec e tudo havia dado certo. Felizmente, talvez por ser ainda muito cedo e não haver muita gente pressionando para entrar, a moça do portão piscou para nós e, cúmplice, falou baixinho:
— Passa, passa, passa...
Ela nem precisaria ter repetido tantas vezes. No primeiro “passa”, o Daniel já estava lá dentro, antes mesmo de mim e do Dante.
Apesar de todo o nervosismo, o jogo em si foi bem mais fácil do que se poderia prever. Ao final de um primeiro tempo equilibrado, que terminou 0 a 0, cheguei a comentar com algumas pessoas que estavam do meu lado:
— Bem que hoje nós poderíamos ter uma noite de são-paulino...
— Como é isso?
— Ah, é fazer logo 2 a 0 e, depois, só curtir o resto do segundo tempo.
— Até parece que você não conhece o time que você torce...
Mas não é que eu estava adivinhando o que iria acontecer? Logo aos 9 minutos, a bola viajou duas vezes seguidas em cobranças de faltas para dentro da área do Boca, até cair nos pés de Emerson Sheik, de frente para o gol. Por sorte, aquela jogada e nossas reações foram filmadas do Tobogã por um rapaz que estava ao nosso lado. Nessa hora, na gravação, dá para ouvir ao fundo uma voz abafada, rouca, sofrida, quase suplicante:
— Sobrou!
Era eu.
Nas imagens, hoje guardadas para sempre em vídeo no nosso computador, seguem-se abraços, palavrões, gente chorando. Eu erguendo o Daniel em triunfo com uma das mãos e limpando as lágrimas com as costas da outra. Faltavam ainda uns 20 minutos para o fim quando novamente o Sheik, aproveitando uma falha do zagueiro quarentão Schiavi, do Boca, decretou os 2 a 0. Dali pra frente foi só festa, até o apito final do juiz. Assim que ele veio, o Daniel disse:
— Há quanto tempo eu estava esperando por isso...
Perguntei, curioso:
— Há quanto tempo, filho?
E ele, com sua mania de nomes e datas:
— Desde 15 de fevereiro de 2012, dia da estreia contra o Táchira. Ou então desde 2 de fevereiro de 2011, naquela derrota para o Tolima.
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Celso, André (centro) e Dante, no Monte Fuji, Japão. |
Eu e o Dante demos risada, até porque estávamos esperando havia muito, muito mais tempo. Nós nos conhecíamos desde o final de 1986, quando comecei a trabalhar no extinto Departamento de Textos da Editora Abril, onde éramos revisores. Desde então, quantas vezes não havíamos estado juntos naquele mesmo Pacaembu ou no Morumbi? Acompanhamos nos estádios boa parte da histórica campanha corinthiana no já longínquo Paulista de 1987, quando o Timão saiu do penúltimo lugar do primeiro turno para um honroso vice-campeonato. Lado a lado, também, lamentamos uma desclassificação nas quartas-de-final da Copa do Brasil de 1989, a primeira de todas, depois de o Corinthians ter conseguido o milagre de fazer os necessários 4 a 1 no Flamengo com três gols marcados depois da metade do segundo tempo e, em seguida, ceder a diminuição da vantagem para 4 a 2 que acabou custando a vaga, gol do veterano Júnior já aos 42 minutos do segundo tempo. Naquele dia, lembro bem do Dante lamentando enquanto me dava uma carona até o metrô em seu Gol preto: “Que pena, o Corinthians perdeu uma boa oportunidade de ganhar a Copa do Brasil e voltar a disputar a Libertadores”. Também estávamos juntos em 1991, naquele mesmo Pacaembu, quando o Corinthians, enfim de volta à Libertadores após 14 anos, perdeu para o Flamengo por 2 a 0, provocando a ira de sua torcida, que atirou até os portões de madeira do velho estádio pela arquibancada abaixo. Naquela noite, nos encontramos quando o Dante veio se abrigar na tribuna de imprensa, onde eu já estava, tão assustado quanto ele.
Talvez por tudo isso, uma vez atingido o objetivo há tanto tempo almejado, sonhos de grandeza imediatamente começaram a povoar nossas cabeças. Ali mesmo, nos degraus do Tobogã, o Dante — que só futuramente iria ganhar o apelido de “Resoluto” — falou: “Celso, eu vou pro Japão. Vamos nessa?” Explicou-me que naquele ano — mais precisamente em dezembro — completaria 50 anos e que já havia resolvido, ali mesmo, “se dar esse presente”. Na hora, não confirmei nada. Mas pela primeira vez comecei não só a considerar a ideia como a gostar muito dela.