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A Guerra do Futebol

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É comum (e ridículo) ouvir de jogadores, principalmente, brasileiros, que o “jogo de hoje será uma guerra”.  Na maioria das vezes, perdem-se em campo, com nervos à flor da pele. Expulsos, como um guerreiro abatido na batalha, deixam os gramados abatidos por adversários, muitas vezes, inferiores tecnicamente.

No futebol mundial há uma história ímpar que ilustra verdadeiramente um conflito entre dois países e em plena eliminatórias de Copa do Mundo. Às vésperas da disputa de mais um Mundial no Brasil, Literatura na Arquibancada recomenda a leitura da obra do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, “A Guerra do Futebol” (Companhia das Letras, 2008).  

Kapuscinski estava bem próximo dos acontecimentos trágicos ocorridos entre Honduras e El Salvador, em 1969, quando os dois países disputavam as eliminatórias para a Copa de 1970. O futebol acabou como pretexto para um conflito armado e real fora dos gramados.


Foram três jogos marcados por fatos tristes e incríveis, até o suicídio de uma torcedora salvadorenha por causa da derrota do país, no primeiro confronto entre os dois países. Sua morte causou comoção nacional e no segundo jogo a torcida de Honduras foi duramente hostilizada. Saldo da tragédia: dois mortos, dezenas de feridos e 150 carros incendiados. Era o pretexto que faltava para os governantes dos dois países para um conflito armado.

Kapuscinski, morto em 2007, era o único repórter estrangeiro próximo aos dois países quando os conflitos começaram. Uma guerra curta, apenas quatro dias, mas com um saldo terrível: 6 mil mortos e dezenas de milhares de feridos.

Literatura na Arquibancada resgata um trecho desta história. O dia em que “A Guerra do Futebol” tornou-se realidade.

Sinopse (da editora)

Ryszard Kapuscinski

É inevitável que um grande repórter se torne um escritor - um grande escritor, no caso do polonês Ryszard Kapuscinski. Entre 1958 e 1980, Kapuscinski foi correspondente da Agência Polonesa de Imprensa na África, América Latina e Oriente Médio, e são suas incríveis aventuras por esses continentes conflagrados que ele compartilha com seus leitores em A guerra do futebol. Voando de uma crise política a outra, esse literato com vocação jornalística (ou vice-versa) viveu e relatou bom número de guerras e revoluções, munido tão-somente de caderninho de anotações, coragem romântica e imensa curiosidade pela experiência humana em situações-limite.

Em textos que reúnem beleza dramática e urgência jornalística, Kapuscinski desenhou perfis de líderes políticos, revolucionários e malucos em geral, aprendendo a arte quase suicida de viver no olho do furacão. Ao mesmo tempo, conviveu longa e intensamente com pessoas comuns, em suas casas, barracos ou na rua, em todos os países pelos quais passou.

"Quando os filhos dos nossos filhos quiserem se informar sobre as crueldades da segunda metade do século XX, eles terão de ler Ryszard Kapuscinski." - Wall Street Journal

A Guerra do Futebol
Por Ryszard Kapuscinski


"Luiz Suarez disse que haveria uma guerra, e eu acreditava piamente em tudo que Luis Suarez dizia. Nós dois morávamos no México, e Luis me dava aulas sobre a América Latina - de como ela era e como devia ser entendida. Ele conseguia prever muitos acontecimentos. Acertara sobre a queda de Goulart no Brasil, a queda de Bosch na República Dominicana e de Jimenez na Venezuela. Ainda muito antes do retorno de Perón, acreditava que o velho caudilho voltaria a assumir a presidência da Argentina, previu o iminente falecimento do ditador do Haiti - François Duvalier, a quem muitos davam muitos anos de vida. Luis sabia se mover nas areias movediças da política local, nas quais amadores como eu afundavam impreterivelmente, cometendo erros a cada passo.

Dessa vez, Luis Emitiu sua opinião sobre uma guerra inevitável assim que pôs de lado um jornal no qual lera a reportagem sobre uma partida de futebol entre Honduras e El Salvador. Os dois países disputavam uma vaga para próxima Copa do Mundo, programada para o verão de 1970 no México.

O primeiro confronto ocorreu num domingo, 8 de março de 1969, em Tegucigalpa, capital de Honduras.

Ninguém no mundo deu importância a esse acontecimento. 


O time de El Salvador chegou a Tegucigalpa no sábado e passou uma noite insone no hotel. Não pôde dormir, alvo que foi de uma guerra psicológica deflagrada pelos torcedores hondurenhos. O hotel foi cercado por uma multidão que atirava pedras nas janelas dos quartos dos jogadores e batia em tambores de lata ou em tonéis vazios. De vez em quando, ouviam-se explosões de foguetes. Centenas de carros estacionados diante do hotel buzinavam sem parar. Os torcedores assobiavam, berravam, gritavam palavras de ordem. Aquilo durou a noite toda, para que o time adversário, insone, nervoso e cansado, perdesse a partida do dia seguinte. Na América Latina, tal comportamento é muito comum e não espanta ninguém.
No dia seguinte, Honduras derrotou o maldormido time salvadorenho por 1 a 0.

Quando o atacante de Honduras Roberto Cardona fez o gol da vitória no último minuto do jogo, Amelia Bolanios, uma jovem salvadorenha de dezoito anos que assistia à partida pela televisão em San Salvador, levantou-se da cadeira, correu até uma escrivaninha em cuja gaveta estava o revólver de seu pai e disparou a arma no coração. 'A jovem não suportou ver seu país posto de joelhos', escreveu, no dia seguinte, El Nacional, diário de San Salvador. O enterro de Amelia Bolanios foi transmitido pela TV e acompanhado por toda a população da capital. O cortejo era precedido por um destacamento militar, com um estandarte. Atrás do caixão, coberto pela bandeira nacional, caminhavam o presidente da República e todos os seus ministros, seguidos pelos onze jogadores da seleção salvadorenha, que, vaiada, debochada e ofendida no aeroporto de Tegucigalpa, retornara ao país naquela madrugada num avião especial. 


Uma semana depois, no estádio com o belo nome de Flor Blanca de San Salvador, foi realizada a segunda partida. Dessa vez, foi o time de Honduras que passou a noite em claro: os enfurecidos torcedores salvadorenhos quebraram as vidraças de todas as janelas do hotel, atirando para dentro dos quartos toneladas de ovos podres, ratos mortos e panos fedorentos. Os competidores foram levados ao estádio em carros de combate da Divisão Motorizada de San Salvador, o que os salvou de uma vingança sangrenta da multidão, que acompanhou o trajeto carregando fotografias da heroína nacional Amelia Bolanios.

O estádio foi cercado por tropas de elite - a Guardia Nacional - munidas de metralhadoras. Durante a execução do hino hondurenho, o público vaiava e assobiava. Em seguida, em vez da bandeira nacional de Honduras, que fora queimada diante do olhar extasiado da multidão, os organizadores da partida içaram no mastro um pano esfarrapado. Era totalmente compreensível que, nessas circunstâncias, os jogadores de Honduras não pensassem na partida, mas se perguntassem se sairiam dali com vida. 'A nossa sorte foi termos perdido aquele jogo', declarou, aliviado, o técnico hondurenho, Mario Griffin.

El Salvador ganhou por 3 a 0. 


Logo após a partida, a equipe hondurenha foi levada, nos mesmos carros de combate, diretamente para o aeroporto. Seus torcedores não tiveram a mesma sorte: agredidos a pauladas e pontapés, fugiram em direção à fronteira, sendo que dois foram mortos pelo caminho e dezenas de outros acabaram hospitalizados. Cento e cinqüenta automóveis dos visitantes foram incendiados. Horas depois, a fronteira entre os dois países foi fechada.

Fora isso que Luis lera no jornal antes de afirmar que haveria uma guerra. Ele fora um repórter experimentado e conhecia muito bem o seu terreno.

Segundo ele, na América Latina a fronteira entre futebol e política é extremamente tênue. A lista de governos que foram derrubados por causa de uma derrota de sua seleção é extensa. Os profissionais da equipe derrotada costumam ser chamados de 'traidores da pátria'. Quando o Brasil conquistou a Copa do Mundo no México, um amigo meu brasileiro - um asilado político - ficou desesperado. 'Os militares da direita', disse, 'acabaram de assegurar mais cinco anos de governo pacífico'. Em sua trajetória para a conquista da Copa, o Brasil derrotara a Inglaterra. O diário carioca Jornal dos Esportes, num artigo intitulado 'Jesus defende o Brasil', explica da seguinte forma o motivo da vitória: 'Toda vez que a bola corria em direção à nossa defesa e o gol parecia inevitável, Jesus baixava a Sua perna do céu e chutava a bola para fora'. O artigo era complementado por desenhos que ilustravam aquele milagre". 

Com os dois resultados das duas primeiras partidas houve a necessidade de um jogo desempate, ocorrido no estádio Asteca, no México. No tempo normal, o jogo terminou 2 a 2. E na prorrogação El Salvador marcou o gol que o levaria à Copa do Mundo de 1970, no México. No dia deste jogo desempate, os dois países fecharam suas fronteiras e mobilizaram suas tropas. A Guerra estava em campo.
 


Sobre o autor:

Ryszard Kapuscinski nasceu em 1932, em Pinsk, então pertencente à Polônia e hoje território da Belarus. Trabalhou durante quarenta anos para a PAP, agência de notícias polonesa, como correspondente estrangeiro na África e na América Latina. Realizou matérias sobre 27 revoluções, golpes de Estado e insurreições diversas. Kapuscinski morreu em 2007, em Varsóvia.

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