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Megafone do esporte: a nova diretoria do Flamengo

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Arte Zuca Sardan
Desde o dia 15/12/2012, um espaço nobre dentro do conteúdo do Literatura na Arquibancada. Deixa Falar: o megafone do esporte surgiu da cabeça de um mestre, o historiador e apaixonado pelo esporte (especialmente quando o tema for o seu querido Botafogo), Raul Milliet Filho.


Deixa Falar: o megafone do esporte é um espaço que estará aqui no Literatura na Arquibancada , no blog do Juca e na Carta Maior (http://www.cartamaior.com.br) quinzenalmente, sábado sim, sábado não, debatendo o esporte em geral e o futebol em particular, dialogando com a História, Política, Música, Economia, Literatura, Cinema, Teatro, Humor etc.

O Megafone do esporte não tem medo de bola dividida e não vai tirar o pé diante de fatos cotidianos polêmicos, como a privatização do Maracanã e os mandatos quase vitalícios de cartolas em seus cargos.

Arte Zuca Sardan

Mas tudo sempre pautado pelo bom humor e aberto ao contraditório, pois Megafone que se preze não é dono da verdade: Deixa Falar.

O time do Deixa Falar: o megafone do esporte tem treze participantes (confira no final o time de craques). O grupo é plural, com opiniões diferentes nos assuntosnas ideias e também nas idades de seus componentes, que variam dos 30 aos 80 anos.

Nesta segunda edição, a reflexão sobre os novos rumos do clube de maior torcida no Brasil, o Flamengo, com a eleição de Eduardo Bandeira de Mello, ex-diretor do BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento.

E a modernização voltou ...(sobre a nova diretoria do Flamengo)
Por Luiz Carlos Ribeiro

Arte Zuca Sardan

O entusiasmo do jornalista Juca Kfouri em relação à eleição da nova diretoria do Flamengo, ocorrida em três de dezembro último, dá alguma mostra de como o conceito de “modernização” tornou-se banal no futebol brasileiro.

Juca foi um dos primeiros jornalistas profissionais a levantar a bandeira da modernização do nosso macunaímico futebol.

A conjuntura era o final dos anos 80 quando alguns diretores de clubes, aproveitando a crise financeira e política que passava a CBF, resolveram organizar por conta própria o campeonato brasileiro e, por extensão, fundar uma liga independente, que ficou conhecida como Clube dos 13. Na ocasião Juca era diretor de uma das mais influentes mídias esportivas, a revista Placar (Grupo Abril) e não apenas apoiou a “Copa União”, como via na embrionária liga um sinal de rompimento com a arcaica e corrupta CBF, bem como a perspectiva de alcançar a desejada modernização do futebol brasileiro.

Quando em 2011 uma nova crise atingiu no Clube dos 13 – que acabou resultando no seu fim trágico – Juca Kfouri (em tom melancólico, como exigia a ocasião), vaticinou a morte da modernidade que a liga, afinal, nunca havia completada. O título de sua crônica era emblemático: “Nascimento e agonia do Clube dos 13”.

“Conto aqui o que vi, e poucas coisas vi tão por dentro em minha vida de jornalista como o nascimento do Clube dos 13 e da Copa União. Como vi o começo lento e gradual de sua decadência. Curiosa e dramaticamente, sua implosão se dá quando parecia ressurgir, embora, agora, pareça mais que tenha sido aquela famosa melhora do doente antes de morrer”.(1)

Eduardo Bandeira de Mello

Agora, quando eleita a nova diretoria do Flamengo, reaparece o velho discurso da modernidade. O presidente eleito, Eduardo Bandeira de Mello (ex-diretor BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento), montou uma equipe composta de pesos pesados do empresariado nacional. De acordo com o noticiado pela imprensa, nomes como Flavio Godinho, executivo da MPX; Rodolfo Landim, ex-executivo da BR Distribuidora e OGX; Luiz Eduardo Baptista, presidente da Sky e Carlos Geraldo Langoni, ex-presidente do Banco Central do Brasil serão os arquitetos da neomodernidade flamenguista.

Perguntado em entrevista ao LANCE!Net sobre qual o carro-chefe da sua proposta, Bandeira de Mello afirma entusiasmado:

“É a equipe que nós temos e a proposta de modernidade e foco na gestão. Queremos a profissionalização do clube. Temos uma equipe de executivos bem-sucedidos na vida empresarial. Ao anunciar um vice-presidente eu me sinto como se fosse o Presidente da República anunciando um ministro. Esse nosso time poderia compor um ministério da República ou secretariado importante. O Flamengo nunca teve em sua administração pessoas do calibre, da competência e da credibilidade desses vice-presidentes que estamos anunciando aos poucos”.(2)


Sobre a dívida financeira que acumula o clube, Bandeira de Mello não é menos modesto: “Nosso homem da reestruturação da dívida será o professor Carlos Langoni, ex-presidente do Banco Central e que lidou com a dívida externa na época mais barra pesada que remonta às negociações com o FMI e o Clube de Paris.”

Sobre essa postura de modernidade e profissionalização, Juca é mais reticente que entusiasmado. Afinal, não seria esse apenas mais um discurso?

“Eduardo Bandeira de Mello é o nome da nova esperança da maior torcida do Brasil, a do Flamengo. (...) Bandeira de Mello, ex-diretor do BNDES, ganhou com facilidade com 1.414 votos do total de 2.675 eleitores, e promete profissionalizar o Flamengo, com apoio do ídolo Zico. Tomara que cumpra e que não seja mais uma decepção, como a própria Patrícia Amorim” (...) (3)

De forma diversa, chama atenção o entusiasmo de um personagem chave nessa curta e mal-aventurada modernização do futebol brasileiro, o empresário e escritor da área de marketing, João Henrique Areias:

“As entidades esportivas brasileiras (clubes, federações e confederações) precisam rever e modernizar seus sistemas de gestão para fazer frente aos novos desafios da indústria do esporte. Profissionalização, boa governança, credibilidade, são mais que atributos, são fatores críticos de sucesso para o desenvolvimento do esporte nacional.

Por esta razão, não tive dúvidas em apoiar e ajudar na coordenação do Eduardo Bandeira de Mello, de forma voluntária.

Ele e o grupo formado por empresários de reconhecida competência, são uma benção não só para nosso Flamengo, mas com capacidade de influenciar e modificar usos e costumes viciados do nosso esporte”.(4)

Arte Zuca Sardan

Areias, para quem não lembra, foi figura decisiva, anos de 80, na construção do sistema de venda dos jogos para as redes de TV, em especial a Rede Globo. Era uma parceria que fazia parte do pacote da modernização, pois teoricamente possibilitaria aos clubes aumentar suas rendas e sair da miséria e do endividamento.

Desse então, muita coisa mudou, mas a divisão entre o arcaico e o moderno continua uma linha tênue e quase invisível. Os ventos que sopram da CBF, sob a presidência de José Maria Marin, e as promíscuas relações entre público e privado, envolvendo os gastos com Copa de 14, entusiasmam menos ainda. Nesse sentido, acompanho o ceticismo de Juca Kfouri.

(1)    Folha de S.Paulo. 1º mar. 2011. Disponível em: <http://blogdojuca.uol.com.br/2011/03/nascimento-e-agonia-do-clube-dos-13/>. Acesso em 13 abr. 2011
(4)    Areias, João Henrique. Por que votar na Chapa Azul nas eleições do Flamengo. Blog do Juca Kfouri, 30.11.2012.

Sobre Luiz Carlos Ribeiro:

Luiz Carlos Ribeiro é professor do Departamento de História da UFPR e coordenador do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade.

*Deixa Falar: o megafone do esporte, espaço de debates idealizado e editado por Raul Milliet Filho. 






Sobre os autores do Megafone do Esporte:


Ademir Gebara– graduado em História e Educação Física, mestre em História pela USP, PH D em História pela London School of Economics and Political Science, ex-diretor e coordenador de Pós da FEF Unicamp, professor visitante Universidade Federal da Grande Dourados.





Antonio Edmilson Rodrigues – é América, livre docente em História, professor da UERJ e da PUC-RJ, pesquisador de História do Rio de Janeiro, escritor de temas vinculados à história urbana, coordenador do projeto Conversa de Botequim e autor de João do Rio, a cidade e o poeta.




Bernardo Buarque – professor da Escola Superior de Ciências Sociais (FGV) e pesquisador do CPDOC/FGV. `É editor da coleção Visão de Campo (7 Letras). Em 2012, publicou o livro ABC de José Lins do Rego (Editora José Olympio).






Flavio Carneiro – é botafoguense, além de escritor, roteirista e professor de literatura na UERJ.www.flaviocarneiro.com.br.









José Paulo Pessoa – é botafoguense, ator, advogado, que achava o Didi mais impressionante que o Garrincha (que foi o maior que já vi!). Diretor, cantor e compositor do Bloco das Carmelitas, de Santa Teresa (RJ).








José Sebastião Witter – é torcedor do São Paulo, professor emérito da USP e professor normalista.









Marcelo W. Proni – economista, doutor em Educação Física pela Unicamp, professor do Instituto de Economia da Unicamp, torcedor do Botafogo de Ribeirão Preto.









Marcos Alvito – é carioca de Botafogo e Flamengo até morrer.  É um antropólogo que dá aula deHistória na UFF desde o longínquo ano de 1984.  Perna-de-pau consagrado, estuda um jogo que nunca conseguiu jogar direito: o futebol. Mas encara qualquer um no futebol de botão.






Ricardo Oliveira – é Vasco, jornalista, educador da prefeitura do Rio de Janeiro e pesquisador da História do futebol. Coordenador da pesquisa do livro Vida que Segue: João Saldanha e as Copas de 1966 e 1970.






Wanderley Marchi Jr – doutor em Educação Física e Sociologia do Esporte e professor da Universidade Federal do Paraná/BRA e da West Virginia University/USA.








Raul Milliet Filho – é botafoguense, mestre em História Política pela UERJ, doutor em História Social pela USP. Como professor, pesquisador e autor prioriza a cultura popular. Gestor de políticas sociais, idealizou e coordenou o Recriança, projeto de democratização esportiva para crianças e jovens. Escreveu Mario Monicelli e o samba carioca: um diálogo possível e irreverente, para o  XXVI  Simpósio Nacional da Anpuh( Associação Nacional de Historia) em 2011 e que pode ser acessado aqui: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308100822_ARQUIVO_MarioMonicellieosambacarioca.pdf.


Zuca Sardan (Carlos Felipe Saldanha) – Nasceu no Rio de Janeiro em 1933, mas vive em Hamburgo. Estudou arquitetura, mas fez diplomacia. Estudou desenho, mas fez letras. Hoje dedica-se a desenhos,vinhetas, poesias e folhetins. Entre seus livros, estão: Ás de colete, poesias, desenhos e Osso do Coração.






Confira os outros artigos já publicados do Deixa Falar: o megafone do esporte:



Rivellino: o "reizinho" do futebol brasileiro

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No primeiro dia de 2013, o aniversário de um dos maiores craques da camisa 10 do futebol mundial: Roberto Rivellino. São 67 anos de paixão pelo futebol. Não é a toa que a biografia publicada há 14 anos ganhou o título: Sai da rua Roberto (Master Book, 1999, Osvaldo Paschoal).

Rivellino é um daqueles jogadores que, para quem teve o privilégio de o ver “desfilando” talento pelos gramados, jamais se esquecerá. Riva é eterno.


Em 2006, ele não poderia ficar de fora do livro que reuniu a maior seleção de todos os camisas 10 no mundo: A Magia da Camisa 10(Verus Editora), também teve os encantos de Rivellino. Abaixo, o texto de Vladir Lemos e André Ribeiro.





Rivellino
Por André Ribeiro e Vladir Lemos


Rivellino era um legítimo camisa 10, mas na Copa que jogou ao lado de Pelé, no México (1970), ninguém teria o direito de quebrar o encanto daquela camisa. Suceder o reinado de Pelé não era missão para qualquer um. Haveria de existir alguém capaz de suportar o peso que aquela simples camisa com dois números às costas representava.

Na Copa de 1974, Rivellino já era um jogador experiente e acostumado com a pressão sofrida pelos craques dos grandes clubes. Estava com 28 anos e era o ídolo do Corinthians, clube paulista com uma das torcidas mais fanáticas de todo o Brasil.


Roberto Rivellino era um garoto nascido no pós-guerra, em 1946, e que muito cedo descobriu o futebol. Tanto que a frase mais proferida por sua mãe naqueles tempos acabou virando título de sua biografia: “Sai da rua, Roberto!”. Sem imaginar, a mãe pedia o impossível, pois era nas ruas que o menino podia aprimorar seu grande dom. A infância e boa parte da adolescência foram passadas não só nas ruas jogando bola, mas também em campos de várzea e, principalmente, em quadras de futebol de salão. Aos 12 anos tentou pela primeira vez um lugar em uma equipe de futebol de campo, o São Paulo, e não foi aproveitado. Os três anos que ainda passaria longe dos gramados foram decisivos para amadurecer um estilo diferente, que seria sua marca registrada no futuro. A intimidade com o futebol de salão permitiu a Rivellino jogar em outra dimensão, em espaços menores, e transformar-se  no dono de um drible curto mortal, sem falar no chute potente de sua perna esquerda.

Em 1962 o Palmeiras, time da capital paulista, esteve perto de ser a equipe que levaria Rivellino para os campos, mas o treinador demorou a perceber o que aquele canhoto poderia fazer. Ao acompanhar sua atuação na final de um campeonato juvenil de futebol de salão, tentou voltar atrás, mas era tarde. O rival Corinthians, ao contrário, viu talento de sobra no menino e, no início de 1963, ele passou a integrar o time juvenil do alvinegro.

A falta de um meia-esquerda levou o garoto para a equipe de aspirantes um ano depois. Foi a oportunidade perfeita para mostrar o que sabia fazer. Como os jogos eram realizados antes de o time profissional entrar em campo, Rivellino criou um laço quase inseparável com a torcida. Em janeiro de 1965 estreou na equipe principal enfrentando o Santa Cruz, do Recife, e marcou um dos gols na vitória por 3 a 0. Curiosamente, entrou em campo com a camisa 8, mas o tempo, a técnica e a vocação para os lances de bola parada transformaram o jogador em ídolo e craque da camisa 10.

Em 1974 Rivellino era o Reizinho do Parque, uma alusão ao campo do time, o Parque São Jorge, na zona leste da cidade, e à herança do trono de Pelé. Foi nessa condição que entrou em campo para enfrentar o arquirrival Palmeiras. O Corinthians, que não conquistava o título do Campeonato Paulista havia 20 anos, não esteve bem na segunda fase do torneio; mas, depois do empate por 1a 1 no primeiro jogo da decisão, a torcida acreditou que era chegada a hora. No jogo decisivo, porém, um gol sofrido aos 24 minutos do segundo tempo deu o título ao Palmeiras. Naquele mesmo torneio, o camisa 10 havia marcado um dos gols mais rápidos da história. Ao ver o goleiro adversário distraído, usou a potência de seu chute para fazer 1 a 0 em cima do América, time do interior de São Paulo, antes que o cronômetro marcasse cinco segundos de jogo. O confronto terminou em 5 a 0.


Mas o passado recente, marcado por momentos brilhantes, de nada adiantou. Torcedores e dirigentes viram em Rivellino o grande culpado pela perda do título estadual, e tamanha cobrança tornou inviável a permanência dele no time. O que poucos sabiam Rivellino revelou tempos depois:

Deus sabe tudo o que fiz e quanto eu queria ganhar aquele título, quanto eu queria ser campeão com a camisa do Corinthians...Pouca gente sabe que saí do Estádio do Morumbi a pé e fui andando pelas ruas até meu apartamento. As pessoas olhavam, mas não acreditavam que era eu mesmo. Saí com cabeça erguida. Tinha perdido um título, muitos outros poderiam vir, mas ninguém iria me tirar o orgulho de ter vestido a camisa branca do Corinthians

Rivellino acabou negociado com o Fluminense, do Rio de Janeiro. Os 50 mil torcedores que fizeram questão de ir ao Maracanã, no dia 8 de fevereiro de 1975, foram um reflexo da expectativa que cercava sua estreia. Era um sábado de carnaval, e o confronto não passava de um amistoso contra o ex-clube. Mostrando uma disposição incrível, Rivellino tomou conta do jogo, fazendo belos lançamentos e, mais do que isso, marcando três gols, dois deles ainda no primeiro tempo. Quando as duas equipes voltaram a se encontrar pouco depois, o ex-corintiano mais uma vez foi hostilizado pela torcida. Mais uma vez a resposta veio em campo. Com um gol do camisa 10, o Fluminense venceu de virada por 2 a 1.


Por mais que os torcedores enxergassem aquelas vitórias como vingança, não era disso que se tratava. O jogador, capaz de dribles cruéis e chutes espantosos, seguiu sua trajetória e levou o Fluminense ao bicampeonato estadual em 1975 e 1976. Na “máquina tricolor”, como ficou conhecido aquele time, continuou mexendo com a emoção dos torcedores por um longo período. Era agora chamado de dono da patadaatômica e não tinha nada a provar, sendo capaz de lançamentos precisos e muito mais.

Certo dia, quando ainda nem jogava no time principal do Corinthians, viu Sérgio Echigo, um companheiro de clube, descendente de japoneses, dar um drible curto que alterava rapidamente a trajetória da bola. Demorou um pouco até entender o que tinha visto, mas gostou tanto do movimento que o aprimorou e o incluiu em seu repertório. Não foram poucas as vezes em que os adversários, no afã de pará-lo, se viram desconcertados pelo drible, eternizado como elástico. Consistia em levar a bola para um lado com a parte de fora do pé e depois, repentinamente, trazê-la de volta, quando os olhos já custavam a acreditar que isso seria possível. Mesmo quando deixou de ser uma novidade, a sensibilidade de saber a hora exata de aplicá-lo não permitiu que se transformasse em um truque comum.


A velha herança do talento forjado nos espaços exíguos do futebol de salão acompanhou Rivellino em todos os cantos, e não foram poucos. No início da década de 1980, após aceitar um convite para jogar na Arábia Saudita, venceria a Copa do Rei e seria bicampeão do torneio local. Ao retornar ao Brasil, ensaiou defender o São Paulo, mas, como tinha o passe preso ao clube saudita, não pôde levar o propósito adiante. A história com a seleção havia terminado três anos antes, no Mundial da Argentina, em 1978.

Rivellino, aos 32 anos, demonstrou nos gramados sentir falta dos companheiros de sua geração. Contundido, jogou apenas três partidas; a última delas, uma vitória contra a Itália que daria o terceiro lugar ao Brasil. Despediu-se invicto do torneio e só não foi além porque os argentinos, donos da casa, tiveram a trajetória facilitada pelos peruanos, vítimas de uma goleada histórica por 6 a 0, placar exato para eliminar o Brasil da disputa pelo título:

Quando saí do vestiário, depois do jogo diante da Itália, não falei nada com ninguém, estava emocionado, decidido. Na seleção não jogaria mais. Saí andando pelo corredor em direção ao ônibus e nem vi se havia pessoas na minha frente, eu só queria sair dali. Foram os cem metros mais longos e mais tristes da minha vida. No meio do caminho chorei, um misto de dever cumprido com o orgulho ferido de estar saindo de uma Copa sem ter apresentado o que pensava”.

Livros imperdíveis da literatura esportiva

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Arte: Anna Kaum

Durante o ano de 2012 Literatura na Arquibancada garimpou alguns dos livros mais importantes produzidos na história da literatura esportiva. Alguns, lançamentos, outros, raridades. Obras fundamentais para pesquisadores, jornalistas e amantes da boa leitura. Confira abaixo nossas dicas:


A biografia de um dos maiores dirigentes esportivos do país, Paulo Machado de Carvalho, na obra “O Marechal da Vitória”:


Um livro raro do mestre da crônica esportiva, Mário Filho: “Histórias do Flamengo”, publicado em 1945.


Uma coletânea da revista Bravo com os textos de alguns dos mais importantes nomes da literatura brasileira: “Bravo – Literatura & Futebol”.


No ano do centenário de Nelson Rodrigues, uma coletânea de algumas de suas crônicas inéditas organizadas por sua filha: “O Brasil em Campo”.


Um livro obrigatório para pesquisadores do futebol brasileiro: “O pontapé inicial”, do mestre Waldenyr Caldas.


Um dos temas mais pesquisados pelos estudiosos do futebol brasileiro, a violência, é analisada com maestria pelo sociólogo Maurício Murad: “A violência no futebol”.


Um dos artigos mais acessados do Literatura na Arquibancada, em 2012, o livro que resgata a trajetória de uma das seleções mais importantes na história do futebol mundial: “Telê e a seleção de 82 – Da arte à tragédia”.


Para estudiosos do futebol e várias modalidades, antropologia também é tema no esporte: “Visão de jogo”.


Um dos livros mais importantes da literatura esportiva escrito por um craque da literatura: “Veneno Remédio”, de José Miguel Wisnik.


Como formar atletas no país é o tema desta obra fundamental para estudiosos, pesquisadores e para quem quer ler a prosa sensacional do mestre João Batista Freire: “Ensinar esporte, Ensinando a viver”.


A utilização do esporte, especialmente o futebol, por regimes autoritários é dissecada na obra de Gilberto Agostino, mestre da UFRJ: “Vencer ou morrer – Futebol, Geopolítica e Identidade Nacional”.


Um clássico da literatura esportiva brasileira, reeditado com atualizações em 2012: “Gigantes do Futebol Brasileiro”, dos mestres João Máximo e Marcos de Castro.


Outra obra de referência da literatura esportiva, fundamental para pesquisadores e estudiosos do futebol: “Footballmania”.


Alex Bellos, um inglês apaixonado pelo Brasil, e um dos livros mais importantes já feitos na literatura esportiva mundial sobre o futebol, paixão número um do torcedor brasileiro: “Futebol – O Brasil em campo”


Um dos mais profundos e detalhados estudos sobre o esporte mais popular do planeta, o futebol, é o que o escritor de origem escocesa, Bill Murray, fez quando escreveu “The world’s game”, traduzido no Brasil como “Uma história do futebol”. 


O clássico da literatura brasileira: O Negro no Futebol Brasileiro”, de Mário Filho.


Uma obra prima da literatura esportiva é o livro escrito por Paulo Guilherme sobre goleiros dos quatro cantos do planeta:


O “terror” vindo das arquibancadas de uma das torcidas mais fanáticas e violentas do mundo: “La Doce – A explosiva história da torcida organizada mais temida do mundo”.


história do livro que em 2012 completou 20 anos e continua a encantar leitores nos quatro cantos do planeta. Febre de Bola, de Nick Hornby, modelo para que torcedores não confundam paixão com violência.


Uma das maiores rivalidades do futebol brasileiro, Corinthians x Palmeiras, visto no contexto político pelo ministro Aldo Rebello. “Corinthians x Palmeiras, o Jogo Vermelho”.


Um ex-craque dos gramados, tricampeão mundial em 1970 com a seleção brasileira, desfila talento, agora, na crônica esportiva: Tostão e suas reflexões em “A perfeição não existe”.


Um livro fundamental para compreendermos as atuais mazelas do futebol brasileiro. Apesar de ser lançado na década de 1930, nunca uma obra foi tão atual.


Um livro espetacular escrito pelo jornalista norte-americano Franklin Foer, “Como o futebol explica o mundo” defende a tese de que o mundo da bola pode explicar as mazelas e as maravilhas da globalização. Uma obra fundamental.


Literalmente, uma “viagem” pelos confins do Brasil. Mario Magalhães e a espetacular obra “Viagem ao país do futebol”.


Uma verdadeira obra prima da literatura composta pelo mestre Hilário Franco Jr.: “A Dança dos Deuses”.

Craques da literatura em campo

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Graciliano Ramos

Em pouco mais de um ano de vida, Literatura na Arquibancada resgatou textos e obras de um seleto time de escritores do Brasil e outros países. Alguns escreviam sobre o tema futebol com maior regularidade do que outros. Em comum, o talento de enxergar de maneira diferenciada o esporte que fascina multidões no mundo inteiro.


Começamos por Décio Pignatari, que partiu no dia 02 de dezembro do ano passado. Décio era poeta, ensaísta, tradutor, contista, romancista, dramaturgo, advogado e professor. Foi um dos criadores do movimento da poesia concreta e um dos maiores especialistas no estudo e análise dos meios de comunicação de massa, especialmente a televisão. 


Em 2012 Graciliano Ramos completou 120 anos. O autor de “Vidas Secas” e “Memórias do Cárcere” também escreveu sobre o futebol causando enorme polêmica, não apenas em sua época, mas para sempre. Em especial, uma crônica publicada pela primeira vez em "O Índio", jornal de Palmeira dos Índios (AL), sua terra natal, em 1921, com o pseudônimo de J. Calisto.


Um artigo espetacular do historiador Raul Milliet Filho sobre Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores do século XX. 


Outra enorme perda em 2012 para a imprensa e literatura esportiva foi Ivan Lessa. Torcedor apaixonado pelo Botafogo, Ivan, que era filho do escritor Orígenes Lessa, nasceu em São Paulo, mas cresceu na cidade do Rio de Janeiro. Depois, escolheu Londres para morar com a mulher e a filha, de onde passou a manter uma coluna na BBC Brasil com crônicas bem-humoradas, sua marca registrada.


Rubem Alves, um dos intelectuais mais famosos e respeitados do Brasil. Rubem Alves tem livros publicados sobre diversos temas como religião, teologia, filosofia da ciência e da educação, crônicas de meditação, poesia, literatura infanto-juvenil. Mesmo não sendo aficionado pelo futebol escreveu uma obra-prima chamada “O futebol levado a riso: lições do bobo da corte”. 


Carlos Heitor Cony é um dos maiores escritores do país e completou em 2012, 86 anos de uma vida quase inteira dedicada ao jornalismo e a literatura brasileira. E o futebol sempre esteve presente em suas reflexões, nos diversos veículos de comunicação e livros que já escreveu. Chegou até mesmo a cobrir Copas do Mundo para o jornal Folha de S. Paulo. Mas Cony não é daqueles autores consagrados que chegam em cima da hora dos grandes eventos para falar como um “famoso da literatura”, mas como quem já viu em campo como torcedor e fã, craques do passado.


Entre os vários craques da literatura brasileira que já passaram pelo Literatura na Arquibancada, Leminski talvez seja o que menos tenha escrito sobre o tema futebol, o que não o impedia, claro, de torcer pelo seu clube de coração a sua maneira. E a descoberta do tal time e de que maneira o poeta Leminski lidava com o futebol estão abaixo: um atleticano, com certeza.


Gilberto Freyre é considerado um dos maiores sociólogos do século 20. É autor da obra-prima da literatura brasileira “Casa Grande & Senzala”, mas também se preocupou desde o início de sua trajetória literária com o tema futebol. De seus textos sobre o esporte, o mais famoso é, sem dúvida, o segundo que publicou. Trata-se do prefácio que redigiu para O negro no futebol brasileiro que se transformou em um clássico da sociologia do futebol brasileiro. 


A literatura brasileira perdeu há dois anos uma de suas referências: Moacyr Scliar. Você já ouviu falar no “Estádio do Pau Seco Futebol Clube”? E que o “grande” estádio acabou demolido para a construção de um cemitério vertical? Esses são os cenários principais do divertido romance escrito por Scliar.


Gay Talese, um dos principais ícones do que ficou conhecido como “novo jornalismo” escreveu muitos livros de enorme sucesso mundial. Mas ele também deixou em seu “Vida de Escritor” (Companhia das Letras, 2009), livro autobiográfico, uma verdadeira obra-prima sobre sua prosa com várias passagens sobre o tema esporte, especialmente o futebol. E não o futebol dos homens, mas sobre o futebol feminino. Talese também revela outras duas paixões esportivas: beisebol e boxe.


Rubem Fonseca é um dos maiores “contistas” da literatura brasileira e por pouco muito a literatura esportiva perde um dos mais belos contos já escrito sobre o tema futebol. Tudo porque Rubem Fonseca teve o seu livro “Feliz Ano Novo”, proibido pela censura durante o regime militar no ano de 1975. O livro de contos foi recolhido das livrarias em todo o país, por ter "matéria contrária à moral e aos bons costumes".


Já no epitáfio deixado por ele, “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino”, começamos a entender porque o escritor e jornalista mineiro gostava tanto de futebol. Como a grande maioria das crianças brasileiras, Sabino sempre teve paixão pelo futebol. Fernando Sabino chegou a realizar a cobertura da Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, para o Jornal do Brasil.


Mário Vargas Llosa, escritor, dramaturgo, poeta, ensaísta, crítico literário, jornalista e candidato derrotado a presidente no Peru, também é apaixonado pelo tema futebol, tanto que, logo após a entrega do Prêmio Nobel, Llosa, quando recebeu a pergunta do jornalista espanhol do El País “se haveria alguma semelhança entre escritores e jogadores de futebol”, ele garantiu que a comparação era possível, sim, e emendou: “um escritor, como um atleta, é construído com disciplina e obstinação".


A paixão do poeta Ferreira Gullar pelo futebol:


Flávio Carneiro, escritor, crítico literário, roteirista, professor de literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), autor de treze livros e mais dois roteiros para cinema é ligadíssimo no tema futebol. Não só pelo talento que tem para escrever, mas pelo fato de quase ter sido um jogador de futebol.


Mia Couto, ícone da literatura mundial, nunca escondeu sua paixão pelo futebol: “A partida de futebol é sempre mais que o resultado. O mais belo num jogo é o que não se converte em pontos de classificação, é aquilo que escapa ao relatador da rádio”. 


Rubem Braga, considerado um dos maiores cronistas do país, também adorava o futebol, tanto que em várias de suas crônicas o tema é recorrente. Em uma trilogia, ele resgata suas experiências de menino, na terra natal, em Cachoeiro de Itapemerim, no Espírito Santo.


Paulo Mendes Campos, fervoroso torcedor do Botafogo carioca, decidiu aposentar-se precocemente das arquibancadas dos estádios. Mas não poderia fazer isso sem deixar um texto magnífico que só mesmo ele, um dos maiores nomes da literatura brasileira poderia fazer.


Um dos maiores escritores da atualidade, o colombiano Gabriel Gárcia Márquez, deixou entre milhares de seus escritos, vários textos sobre o futebol e também alguns sobre um astro do boxe mundial, Joe Louis. 

Lourenço Diaféria: saudades de um cronista

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Há cinco anos a literatura brasileira perdeu um de seus maiores cronistas. Lourenço Diaféria tinha 75 anos e durante todo o período que escreveu para diversos jornais, o futebol sempre esteve presente. Corintianíssimo, Diaféria deve estar feliz lá no céu, ao lado do Dr. Sócrates, um dos personagens da crônica abaixo que o Literatura na Arquibancada resgata de uma de suas obras, Circo de Cavalões(Editora Summus, 1978, p. 129-132).

Antena ligada
Por Lourenço Diaféria


Troquei meu televisor em branco-e-preto por um televisor em cores com controle remoto, para facilitar a vida de meus filhos, que agora, sabe como é, época de provas, estão se virando mais que pião na roda. Imaginem que outro dia um professor teve a coragem de mandar meu filho gavião-da-fiel fazer um trabalho sobre o Sócrates. Fiquei uma arara. Em todo caso, apanhei a revista Placar e recomendei que o garoto consultasse os arquivos esportivos da Folha e do Jornal da Tarde. Não é por ser meu filho, mas o guri caprichou do primeiro ao quinto. Tirou zero.

Puxa, assim também é demais. Resolvi levar um papo com o professor, ver se não era perseguição. O professor foi muito gentil, porém ninguém me tira da cabeça que ele é palmeirense disfarçado de são-paulino. Garantiu-me que havia ocorrido um equívoco. O Sócrates que ele queria é um craque da redonda que tomou cicuta. Essa é boa. Por que não avisou antes? Como é que vou adivinhar que o homem jogava dopado?

Me manquei, mas o professor percebeu meu azedume. Disse que ia dar uma nova oportunidade.

Falou, eu disse.

Preveni meu garoto que ficasse de orelha em pé, lá vinha chumbo. Dito e feito. O professor, deixando cair a máscara alviverde, deu uma de periquito campineiro e pediu um trabalho completo sobre o Guarani.

Deixa que eu chuto, falei a meu filho. Pode contar comigo na regra três. Eu mesmo cuido da pesquisa.

Peguei a escalação completa do Guarani, botei o Neneca no gol, fiz a maior apologia do time da terra das andorinhas. Pra me cobrir e não deixar nenhum flanco desguarnecido, telefonei pro meu amigo Antônio Contente, que transa em assuntos culturais e conexos (como seja a imprensa), e pedi por favor que me mandasse uma camisa oito autografada. Diretamente de Campinas e pelo malote.

Guarani, campeão brasileiro 1978.

Não é pra falar, mas o trabalho escolar ficou um luxo. Sem falsa modéstia, estava esperando pro meu filho no mínimo aprovação cum laude e placa de prata, para não dizer medalha de honra ao mérito.

Pois deu zebra. Começo a desconfiar que o tal professor me armou uma arapuca e entrei fácil, como um otário. O homem deve ser primo do Dicá. Sabem o que o mestre fez? Heim? Querem saber? Deu outro zero pro meu filho. O pior é que não devolveu a camisa oito autografada.
Essa não deixei barato. Fui de peito aberto, às falas.

– Ilustre – eu disse – com o perdão da palavra, mas que diabo de safadeza vossa senhoria anda arrumando pro meu garoto gavião-da-fiel? Então eu perco tempo, pesquiso, consulto a história gloriosa da equipe campineira, faço a maior zorra com o time do Brinco da Princesa, e o garoto ganha cartão vermelho?

Que grande cínico! O homem me olhou com aqueles olhos de olheiras – acho que tem almoçado e jantado mal, sei lá, dizem que professor padece um bocado – coçou a cabeça, murmurou:

– Foi o senhor quem fez a lição?


Fiquei meio sem jeito:

– Bem, fazer não fiz. Dei uma orientação didática. Pai é para essas coisas...

Ele não se comoveu. Ao contrário, foi até rude:

– Se aceita um conselho, pare de dar palpite na lição de casa de seu filho. O senhor não conhece nada do Guarani.

Falar isso na minha cara! Tive de aguentar calado. Nunca soube que no diacho do time campineiro figurasse a dupla de área chamada Peri e Ceci. E com essa constante mudança de técnicos, como podia sacar que o técnico atual é o Zé de Alencar?

– Tá bem – eu disse – não vamos brigar por tão pouco. O professor pode dar outra colher de chá ao menino?

"O Guarani", telenovela baseada
no romance homônimo de José de
Alencar, exibida em 1991, pela TV Manchete, 
dirigida por Walcyr Carrasco.

Deu. O professor quer agora os capítulos completos de um romance, por coincidência com o mesmo nome do time de Campinas: o Guarani. É qualquer coisa com índio sioux que de repente se vê obrigado a salvar uma mulher biônica das águas da enchente. Deve ser telenovela em cores. Mas só para complicar a vida do meu filho, o professor não revelou o horário. Porém desta vez ele não me ferra. Pela dica do enredo que deixou escapar, deve ser mais uma dessas sucessões de cenas de violência que a gente é obrigada a engolir todas as noites na televisão. Estou de antena ligadona, meu chapa.










Sobre Lourenço Diaféria:

Nasceu no bairro do Brás, em São Paulo (SP), no ano de 1933. Contista, cronista e autor de histórias infantis, o jornalista iniciou sua carreira em 1956 na “Folha da Manhã”, hoje “Folha de S. Paulo”, como preparador de matérias. Em 1964 escreveu sua primeira crônica assinada. Ficou na “Folha” até 1977, ano em que foi preso e processado com base na Lei de Segurança Nacional pela autoria da crônica “Herói. Morto. Nós", considerada ofensiva às Forças Armadas. O processo durou cerca de três anos e terminou com a absolvição do cronista, que posteriormente voltou a atuar na “Folha de S. Paulo”. No ano de sua prisão, 1977, o conto “Como se fosse um boi” é premiado com o quarto lugar no VII Concurso Nacional de Contos do Paraná e incluído no livro Novos Contistas, editado pela Francisco Alves Editora. Colaborou também no “Jornal da Tarde”, “Diário Popular”, “Diário do Grande ABC”, e escreveu para as rádios "Excelsior", "Gazeta", "Record", "Bandeirantes" e para a "Rede Globo".

Algumas obras do Autor:

Um gato na terra do tamborim, 1976
Circo dos Cavalões, 1978
A morte sem colete, 1983
A longa busca da comodidade, 1988
O invisível cavalo voador – Falas contemporâneas, 1990
Papéis íntimos de um ex-boy assumido, 1994
O imitador de gato, 2000
Brás – Sotaques e desmemorias, 2002

Rubem Braga: o centenário do mestre da crônica

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12 de janeiro de 2013, centenário de um dos maiores cronistas brasileiros. Cronista integral, porque Rubem Braga jamais se atreveu em outros gêneros literários, como o romance, por exemplo. Dizem alguns críticos que até tentou. Não precisava. Foram mais de 15 mil crônicas escritas até 1990, ano de sua morte.

E o futebol sempre esteve presente em suas crônicas, especialmente, nas recordações de sua infância em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, onde nasceu. Certa vez, em uma enquete realizada por uma revista sobre as “dez coisas que fazem a vida valer a pena”, Rubem Braga relacionou essa: "Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para o seu lado e, de repente, dar um chute perfeito - e ser aplaudido pelos serventes de pedreiro."


Rubem Braga seria o Pelé da crônica brasileira? Como em qualquer enquete sobre o melhor do futebol, com o rei nada se compara. E assim é com Rubem Braga. Ele poderia ser um Didi, craque dos anos 1950, clássico, inteligente, elegante e...bom...muito bom no que fazia.

Nas várias homenagens recebidas, Rubem Braga virou tema de uma das escolas de samba de sua terra natal. A Unidos de Jucutuquara desfila com o samba-enredo: "A centenária noite do sabiá da crônica: entre pássaros, palavras, chiquitas e baianas". 


A definição para “um bom cronista” feita por Rubem Braga é definitiva: “o bom cronista abre a janela para retratar a vida”. E foi assim que ele escreveu sobre o futebol, na janela da casa em que viveu a infância. Em uma trilogia, ele resgata suas experiências de menino, na terra natal, em Cachoeiro de Itapemerim, no Espírito Santo. Mais abaixo, Literatura na Arquibancada resgata uma delas: “Os Teixeiras moravam em frente”. As outras duas são: “As Teixeiras e o futebol” e “A vingança de uma Teixeira”, todas a respeito das irmãs Teixeiras, uma família que morava em frente a sua casa e tinha as janelas repletas de vidros. As peladas jogadas por Rubem Braga e os amigos, evidentemente, eram ameaça constante para os vizinhos.

Ainda neste post, também um poema escrito em 1946 por Rubem Braga, “Retrato do Time”, relembrando outra fase dele com o futebol, desta vez, como jogador de uma equipe que se tornou inesquecível para o escritor.


Rubem Braga morreu no dia 19/12/1990 aos 77 anos. Para saber mais sobre o escritor, Literatura na Arquibancada sugere a leitura de sua biografia, escrita por Marco Antonio de Carvalho, “Rubem Braga – Um cigano fazendeiro do ar” (Editora Globo, 2007). Também vale acessar o link abaixo: http://www.tirodeletra.com.br/biografia/RubemBraga.htm


Retrato do Time

No primeiro plano vê-se a linha intrépida
Em posição de repouso vigilante
Ajoelhada sobre o joelho esquerdo,
Prestes a erguer-se
Uma vez batida a chapa
E atacar com ímpeto.

A defesa está atrás, de pé pelo Brasil.
Esse de gorro era nosso melhor elemento
Lembro que nesse jogo Nico foi expulso de campo.
Injustamente pelo juiz.
Porém não antes de marcar seu "goal".
Esse mais gordo chamava Roberto Vaca-Brava.
Nosso "center-half", homem aliás capaz
De jogar em qualquer posição... Quer ver? Me lembro:

Joca, Liberato e Zico,
Tião, Roberto e Sossego,
Baiano, eu, Coriolano, Antonico e Fuad.

Era um onze imortal
Como aliás se nota nessa fotografia
Nessa chuvosa tarde antigamente heróica eternamente
Em que empatamos porém foi nossa a vitória moral.


E olhando o retrato 
Olho especialmente o meu:
Um rapazinho feio, de ar doce e violento
Sobre o qual disse o jornal:
"O valoroso meia-direita."
E com toda razão, modéstia à parte.
Esse alto, nosso "keeper" Joca Desidério
Quando a linha fechava ele gritava para os "backs" —
Sai tudo, sai da frente — e avançava na linha.

E chorava de raiva quando a bola entrava.
Mais tarde, por causa de um italiano, ele se fez assassino
Mas com toda razão, segundo me contaram.

Alviverde camisa do Esperança
do Sul Foot-Ball Club, conhecido
Como os capetas verdes — somos nós!

Nós todos envergando essas cores sagradas
E no coração dentro do peito cada um tem uma
[namorada na bancada,
Cada um menos um.
Era Fuad, que não interessava a ninguém,
E morreu tuberculoso sacrificado de tanto correr na
[extrema
É esse aqui, de nariz grande, esse turquinho feio.

Fonte:
Livro de versos. Il. Jaguar e Scliar. Pref. Affonso Romano de Sant'Anna. Posfácio Lygia Marina Moraes. Rio de Janeiro: Record, 1993

Casa de Rubem Braga, em Cachoeiro de Itapemirim.

Os Teixeiras moravam em Frente

Para não dar o nome certo digamos assim: os Teixeiras moravam quase defronte lá de casa.
Não tínhamos nada contra eles: o velho, de bigodes brancos, era sério e cordial e às vezes até nos cumprimentava com deferência. O outro homem da casa tinha uma voz grossa e alta, mas nunca interferiu em nossa vida, e passava a maior parte do tempo em uma fazenda fora da cidade; além disso seu jeito de valentão nos agradava, porque ele torcia para o mesmo time que nós.

Mas havia as Teixeiras. Quantas eram, oito ou vinte, as irmãs Teixeiras? Sei que era uma casa térrea muito, muito longa, cheia de janelas que davam para a rua, e em cada janela havia sempre uma Teixeira espiando. Havia umas que eram boazinhas, mas em conjunto as irmãs Teixeiras eram nossas inimigas, acho que principalmente as mais velhas e mais magras.

Pedra Itabira, em Cachoeiro de Itapemirim.

As Teixeiras tinham um pecado fundamental: elas não compreendiam que em uma cidade estrangulada entre morros, nós, a infância, teríamos de andar muito para arranjar um campo de futebol; e, portanto, o nosso campo natural para chutar a bola de borracha ou de meia era a rua mesmo.

Jogávamos descalços, a rua era calçada de pedras irregulares (só muitos anos depois vieram os paralelepípedos, e eu me lembro que os achei feios, com sua cor de granito, sem a doçura das pedras polidas entre as quais medrava o capim; e achei o nome também horroroso, insuportável, paralelepípedos, nome que o prefeito dizia com muita importância, parece que a grande glória de Cachoeiro e o progresso supremo da humanidade residia nessa palavra imensa e antipática — paralelepípedos); mas, como eu ia dizendo, a gente dava tanta topada que todos tínhamos os pés escalavrados: as plantas dos pés eram de couro grosso, e as unhas eram curtas, grossas e tortas, principalmente do dedão e do vizinho dele. Até ainda me lembro de um pedaço do "campo" que era melhor, era do lado da extrema direita de quem jogava de baixo para cima, tinha uma pedra grande, lisa, e depois um meio metro só de terra com capim, lugar esplêndido para chutar em gol ou centrar.

Tenho horror de contar vantagem, muita gente acha que eu quero desmerecer o Rio de Janeiro contando coisas de Cachoeiro, isto é uma injustiça; a prova aqui está: eu reconheço que o Estádio do Maracanã é maior que o nosso campo, até mesmo o Pacaembu é bem maior. Só que nenhum dos dois pode ser tão emocionante, nem jamais foi disputado tão palmo a palmo ou pé a pé, topada a topada, canelada a canelada, às vezes tapa a tapa.

Não consigo me lembrar se a marcação naquele tempo era em diagonal ou por zona; em todo caso a técnica do futebol era diferente, o jogo era ao mesmo tempo mais cavado e mais livre, por exemplo: não era preciso ter 11 jogadores de cada lado, podia ser qualquer número, e mesmo às vezes jogavam cinco contra seis, pois a gente punha dois menores para equilibrar um vaca-brava maior.

Eu disse que as partidas eram emocionantes; até hoje não compreendo como as Teixeiras jamais se entusiasmaram pelos nossos prélios. Isso foi um erro, e na semana que vem eu contarei por quê.

Fonte:
“A traição das Elegantes”, (Editora Sabiá, 1967, RJ)

O megafone do esporte: 100 anos do Diamante Negro

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Arte: Zuca Sardan
Desde o dia 15/12/2012, um espaço nobre dentro do conteúdo do Literatura na Arquibancada. Deixa Falar: o megafone do esporte surgiu da cabeça de um mestre, o historiador e apaixonado pelo esporte (especialmente quando o tema for o seu querido Botafogo), Raul Milliet Filho.

Deixa Falar: o megafone do esporte é um espaço que estará aqui no Literatura na Arquibancada , no blog do Juca (http://blogdojuca.uol.com.br/)e na Carta Maior (http://www.cartamaior.com.br) quinzenalmente, sábado sim, sábado não, debatendo o esporte em geral e o futebol em particular, dialogando com a História, Política, Música, Economia, Literatura, Cinema, Teatro, Humor etc.

Arte: Zuca Sardan

O Megafone do esporte não tem medo de bola dividida e não vai tirar o pé diante de fatos cotidianos polêmicos, assim como não deixará de reverenciar a memória de ícones do esporte brasileiro. 

Mas tudo sempre pautado pelo bom humor e aberto ao contraditório, pois Megafone que se preze não é dono da verdade: Deixa Falar.

O time do Deixa Falar: o megafone do esporte tem treze participantes (confira no final o time de craques). 

O grupo é plural, com opiniões diferentes nos assuntos, nas ideias e também nas idades de seus componentes, que variam dos 30 aos 80 anos.

Arte: Zuca Sardan




Nesta terceira edição (divida em dois artigos),uma homenagem do mestre Sebastião Witter a um dos maiores jogadores de futebol do planeta bola: Leônidas da Silva. No ano do centenário do Diamante Negro, Witter, que está completando 80 anos de vida, teve o privilégio de ver Leônidas desfilar seu talento dentro dos gramados. Deixa Falar: o megafone do esporte e Literatura na Arquibancada parabeniza esses dois verdadeiros craques, dentro e fora dos gramados. 

Leônidas da Silva, nasceu no dia 06 de setembro de 1913 e morreu no dia 24 de janeiro de 2004. 

No segundo artigo, em outro post, a recordação do escritor Flavio Carneiro sobre as lentes do histórico Canal 100.



Leônidas da Silva em São Paulo
Por Sebastião Witter

Arte: Zuca Sardan

Na década de quarenta do século XX, quando ainda acontecia a Segunda Guerra Mundial, o craque insuperável, Leônidas da Silva, veio para São Paulo, contratado pelo São Paulo Futebol Clube. Já veterano, para a época, o São Paulo iniciou uma prática e que mantém até os tempos atuais: contratar veteranos para jogar com os seus jovens iniciados, atualmente nos seus setores de treinamento e, então, no Canindé, onde, hoje a Portuguesa tem seu estádio.

Leônidas foi uma aquisição incomparável do tricolor paulista e ajudou a equipe a conquistar tudo nas décadas de 1940 e 1950; creio que este período só comparável ao de Gerson, quando também veio, veterano e também do Rio para fazer o São Paulo crescer.


Mas fiquemos com Leônidas – o Diamante Negro – sobre quem voltarei a falar, neste mesmo espaço, em momento oportuno. Creio que não exagero em dizer, pois eu o vi jogar, que ele só não é mais lembrado porque, então, não havia vídeo para eternizá-lo e divulgar suas jogadas espetaculares nos canais de televisão. Com ele o São Paulo fez um time que, os antigos como eu, o têm na ponta da língua: King, Piolim e Virgilio; Zezé, Zarzur e Noronha; Luisinho, Sastre, Leônidas, Remo e Pardal (depois Teixeirinha).

Nesses mesmos anos, em que os são-paulinos dizem desses jogadores, também os corintianos, palmeirenses e ipiranguistas, santistas, jabaquarenses, etc, dirão dos seus. Eram times que jogavam juntos por muitos anos e não se podia substituir jogadores (mesmo machucados) durante uma partida. Nada era como na atualidade em que, a cada partida, joga um grupo diferente. E por isso mesmo não se fala mais em time do São Paulo, time do Santos ou do Corinthians ou do Palmeiras, Flamengo, Vasco, enfim; fala-se em Grupo de jogadores do Fluminense ou Grupo Unido da Seleção tal ou qual.


Mas, Leônidas da Silva veio como craque, não agradou de pronto e passou até a ser chamado de “bonde” pela imprensa paulistana até começar a brilhar e se transformar no grande craque do futebol paulista. Eu tive o privilégio de vê-lo, em sua estreia no Pacaembu, em 1942, e de acompanhar sua trajetória toda como jogador e depois como treinador e cronista esportivo.

Imaginem os leitores, a emoção que me toma ao estar repensando e, por isso, revivendo o espetáculo de 71 anos atrás, vivido pelo menino de 9 anos num Pacaembu da Concha Acústica! Ninguém pode sentir o que se passa na alma do velho professor que conviveu com esse momento histórico. Então, naquele estádio lotado o menino via do alambrado o jogador que ele somente conhecia das figurinhas da ‘bala futebol’, que a gente colecionava em álbuns que nunca se completavam porque as ‘carimbadas’, e Leônidas era uma delas, quase nunca chegavam às nossas mãos. Mas eu tinha um Leônidas com carimbo e tudo... Era um outro momento do nosso futebol!


Leônidas da Silva acabou vivendo sua grande história e sempre foi lembrado como o ‘homem da bicicleta’, eternizada por uma foto que existe lá no Morumbi, em um memorial bem montado pelo clube que o consagrou e o apoiou sempre até seus últimos dias.

Já nos tempos de cronista esportivo, Leônidas teve quem concordasse e quem não concordasse com ele, mas sempre foi um homem de opiniões firmes e muito bem informado.

O tempo passou, o São Paulo, o Corinthians, o Palmeiras, a Portuguesa, o Santos, para falar somente dos maiores clubes, montaram grandes equipes e chegaram a ter conquistas memoráveis, que também marcaram época, mas, nestes tempos de século vinte e um parece que estamos a carecer de mais futebol e mais craques em todos os clubes brasileiros, pois, embora o Brasileirão seja, no meu entender um dos grandes campeonatos do mundo, está a exigir mais organização e através desta o essencial: público. “E, bola pra frente...”.

Sobre Sebastião Witter:

É torcedor do São Paulo, professor emérito da USP e professor normalista. Foi um dos pioneiros na introdução do futebol como objeto de estudo na Universidade, assunto até então estigmatizado. Foi também Supervisor do Arquivo Público do Estado de São Paulo Secretaria da Cultura (1977/1988); Diretor do Centro de Apoio à Pesquisa Histórica (CAPH) Sérgio Buarque de Holanda USP (1988/1992); Diretor do Instituto de Estudos Brasileiros IEB USP (1990/1994); Coordenador Geral da Coordenadoria de Comunicação Social (CODAC) USP (1991/1994); Diretor Geral do Museu Paulista da Universidade de São Paulo / Museu do Ipiranga USP (1994/1999). Além de assinar diversas publicações: inúmeros livros, artigos, resenhas e crônicas. Atualmente é Diretor Presidente da WITTER & WITTER ASSESSORIA E CONSULTORIA EDUCACIONAL LTDA. 

*Deixa Falar: o megafone do esporte, espaço de debates idealizado e editado por Raul Milliet Filho. 

Sobre os autores do Megafone do Esporte:


Ademir Gebara– graduado em História e Educação Física, mestre em História pela USP, PH D em História pela London School of Economics and Political Science, ex-diretor e coordenador de Pós da FEF Unicamp, professor visitante Universidade Federal da Grande Dourados.


Antonio Edmilson Rodrigues – é América, livre docente em História, professor da UERJ e da PUC-RJ, pesquisador de História do Rio de Janeiro, escritor de temas vinculados à história urbana, coordenador do projeto Conversa de Botequim e autor de João do Rio, a cidade e o poeta.


Bernardo Buarque – professor da Escola Superior de Ciências Sociais (FGV) e pesquisador do CPDOC/FGV. `É editor da coleção Visão de Campo (7 Letras). Em 2012, publicou o livro ABC de José Lins do Rego (Editora José Olympio).


Flavio Carneiro – é botafoguense, além de escritor, roteirista e professor de literatura na UERJ.www.flaviocarneiro.com.br.


José Paulo Pessoa – é botafoguense, ator, advogado, que achava o Didi mais impressionante que o Garrincha (que foi o maior que já vi!). Diretor, cantor e compositor do Bloco das Carmelitas, de Santa Teresa (RJ).


Luiz Carlos Ribeiro– professor de História da Universidade Federal do Paraná e coordenador do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade.


Marcelo W. Proni – economista, doutor em Educação Física pela Unicamp, professor do Instituto de Economia da Unicamp, torcedor do Botafogo de Ribeirão Preto.


Marcos Alvito –  é carioca de Botafogo e Flamengo até morrer.  É um antropólogo que dá aula de História na UFF desde o longínquo ano de 1984.  Perna-de-pau consagrado, estuda um jogo que nunca conseguiu jogar direito: o futebol. Mas encara qualquer um no futebol de botão. Acaba de publicar A Rainha de Chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra (www.clubedeautores.com.br)


Ricardo Oliveira – é Vasco, jornalista, educador da prefeitura do Rio de Janeiro e pesquisador da História do futebol. Coordenador da pesquisa do livro Vida que Segue: João Saldanha e as Copas de 1966 e 1970.


Wanderley Marchi Jr – doutor em Educação Física e Sociologia do Esporte e professor da Universidade Federal do Paraná/BRA e da West Virginia University/USA.


Raul Milliet Filho – é botafoguense, mestre em História Política pela UERJ, doutor em História Social pela USP. Como professor, pesquisador e autor prioriza a cultura popular. Gestor de políticas sociais, idealizou e coordenou o Recriança, projeto de democratização esportiva para crianças e jovens. Escreveu Mario Monicelli e o samba carioca: um diálogo possível e irreverente, para o  XXVI  Simpósio Nacional da Anpuh( Associação Nacional de Historia) em 2011 e que pode ser acessado aqui: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308100822_ARQUIVO_MarioMonicellieosambacarioca.pdf.


Zuca Sardan (Carlos Felipe Saldanha) – É torcedor do Vasco, nasceu no Rio de Janeiro em 1933, mas vive em Hamburgo, na Alemanha. Estudou arquitetura, mas fez diplomacia. Estudou desenho, mas fez letras. Hoje dedica-se a desenhos, vinhetas, poesias e folhetins. Entre seus livros, estão: Ás de coletepoesias, desenhos e Osso do Coração.





Confira os outros artigos já publicados do Deixa Falar: o megafone do esporte:




Megafone do esporte: o eterno Canal 100

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Arte: Zuca Sardan
Desde o dia 15/12/2012, um espaço nobre dentro do conteúdo do Literatura na Arquibancada. Deixa Falar: o megafone do esporte surgiu da cabeça de um mestre, o historiador e apaixonado pelo esporte (especialmente quando o tema for o seu querido Botafogo), Raul Milliet Filho.

Deixa Falar: o megafone do esporte é um espaço que estará aqui no Literatura na Arquibancada , no blog do Juca (http://blogdojuca.uol.com.br/)e na Carta Maior (http://www.cartamaior.com.br) quinzenalmente, sábado sim, sábado não, debatendo o esporte em geral e o futebol em particular, dialogando com a História, Política, Música, Economia, Literatura, Cinema, Teatro, Humor etc.

Arte: Zuca Sardan

O Megafone do esporte não tem medo de bola dividida e não vai tirar o pé diante de fatos cotidianos polêmicos, assim como não deixará de reverenciar a memória de ícones do esporte brasileiro. 

Mas tudo sempre pautado pelo bom humor e aberto ao contraditório, pois Megafone que se preze não é dono da verdade: Deixa Falar.

O time do Deixa Falar: o megafone do esporte tem treze participantes (confira no final o time de craques). 

O grupo é plural, com opiniões diferentes nos assuntos, nas ideias e também nas idades de seus componentes, que variam dos 30 aos 80 anos.




Arte: Zuca Sardan


Nesta terceira edição (divida em dois artigos), a recordação do escritor Flavio Carneiro sobre as lentes do histórico Canal 100, em crônica publicada no livro Passe de Letra: futebol & literatura(Editora Rocco, RJ, 2009). O canal 100 era um cinejornal criado por Carlos Niemeyer e que entre 1959 e 1986 deixou amantes do futebol e do cinema fascinados.

No segundo artigo, em outro post, uma homenagem do mestre Sebastião Witter a um dos maiores jogadores de futebol do planeta bola: Leônidas da Silva.




Canal 100
Por Flavio Carneiro

Arte: Zuca Sardan




Quem gosta de futebol e já era grandinho nos anos 1980 há de se lembrar do Canal 100. Quando as luzes da sala de cinema se apagavam, a tela se enchia de bolas coloridas de variados tamanhos, explodindo como se fossem fogos de artifício, e se ouvia em alto e bom som a musiquinha inesquecível: pananan nanammm...

Nesse momento abriam-se, de par em par, as janelas do sonho. E por elas atravessávamos de corpo e alma, entregues à grandiosidade das imagens, à magia da câmera lenta, ao encanto de uma voz potente e familiar que narrava cada lance da partida como se fosse uma decisão de Copa do Mundo.


Criado no final da década de 1950 por Carlos Niemeyer, o Canal 100 surgia como um telejornal provocador. Não era como os pequenos números da televisão: 2,3,5,6,7. Era o canal 100 ora essa, faça-me o favor!

Exibido antes das sessões de cinema, e renovado a cada semana, o telejornal abordava assuntos do momento, mas seu forte mesmo eram as matérias sobre futebol. Às vezes, o filme em si era fraquinho, e saíamos do cinema com aquela sensação de tempo perdido. Quer dizer, quase perdido. Por pior que fosse o filme, tínhamos assistido antes ao Canal 100 e isso já fazia valer o ingresso.

Em artigo para o site Cinemascópio, Kleber Mendonça Filho lembra bem o que era aquilo: “O futebol do Canal 100 tinha releituras de jogadas impossíveis de serem vistas das arquibancadas ou na televisão, um futebol em 35mm, gingado nos seus mínimos detalhes. Mulheres na platéia geralmente amavam as imagens ampliadas de coxas musculosas dos atletas, os jogadores escarravam elegantemente ansiosos em câmera lenta, a tensão de uma barreira de homens preocupados com um chute potente, a bola rodopiando doida em direção à rede.”


Era isso. E era mais do que isso. Quando assistia às sessões do telejornal, ficava em mim a vaga intuição de que aquilo não era apenas efeito da arte de um grupo de cinegrafistas de primeira linha, com destaque para Francisco Torturra. Havia algo mais, que não se podia explicar pela técnica do cinema. Quem sabe fosse alguma coisa no campo da intuição, do espírito, talvez uma fagulha divina que se insinuava em algum lugar indecidível entre a câmera, a arquibancada, o gramado e, se metendo em meio aos torcedores, jogadores, juiz, bandeirinhas, gandulas, repórteres, encontrava o espaço exato para o indizível, para o que não se pode pegar com a mão.

Minha intuição ganhou força quando um cinema do Rio, o Estação Botafogo, resolveu apresentar sessões mais longas do telejornal. Não seriam sessões que antecedessem as de um filme qualquer, nada disso, o Canal 100 deixaria de ser o jogo preliminar e passaria a ser ele mesmo o grande clássico. Seriam sessões editadas, reunindo séries de apresentações de modo a compor cada uma mais ou menos o tempo de duração de um longa-metragem.

Não me lembro bem de quando se deu o festival do Estação, mas me lembro do que pensei quando soube da notícia: não vai dar certo.


O Canal 100 funcionava justamente porque era curto e porque antecedia o longa-metragem. Colocado assim, no meio do palco, sob a luz dos holofotes, o coitado corria o risco de dar vexame, de gaguejar na frente da platéia, de esquecer a fala e ser vaiado ostensivamente por expectadores raivosos. Confesso, fiquei com pena do Canal 100. Nutria por ele um carinho fraternal e me doeu o coração saber que estaria exposto ao ridículo.

Claro que não poderia me furtar ao compromisso de assistir. Afinal, era quase um irmão que estava lá, na berlinda. Escolhi uma sessão que apresentava um histórico dos clássicos entre Flamengo e Botafogo.

Botafoguense de carteirinha, achei que não deveria ir sozinho. Seria fundamental convidar um flamenguista, já que o programa, se tinha a ver com futebol, exigia uma cerveja depois, acompanhada de apaixonado embate. Convidei meu amigo Miguel Falbo, músico de primeira e jogador de segunda, que apesar de tudo se dizia grande entendedor do esporte bretão.


Quando entramos na sala de cinema, o que vi foi absolutamente insólito. Todos os lugares praticamente tomados (tivemos que ficar espremidos num cantinho lá na frente) por alucinados torcedores, alguns portando enormes bandeiras, a maioria com latas de cerveja ou refrigerante nas mãos. Ao meu lado, um senhor estava sentado sobre uma almofada rubro-negra que trouxera de casa e tinha um radinho de pilha colado no ouvido. A almofada até dava para entender, fora um capricho, mas radinho de pilha?!

Como diria o velho Simão Bacamarte, saído da pena genial de Machado de Assis: “insânia, insânia, e só insânia”.

Eram na maioria homens os espectadores, mas havia mulheres também. E muitos usando as camisas dos times (não entendi a presença de um moço branco, magro, pálido, com a camisa do Vasco – talvez tivesse errado de sessão ou talvez fosse um poeta romântico em busca de emoções fortes). Boa parte da platéia fumava desbragadamente, o que tornava ainda mais nebuloso o cenário, de onde surgiriam dali a pouco as tão esperadas imagens na tela. Aquilo não era uma sala de cinema, era uma mistura de bar e Maracanã em dia de decisão.

Paulo César Caju

Começa a sessão. Bolinhas coloridas pipocando na tela, música: pananan nanammm... Delírio da galera, bandeiras desfraldadas, uivos. Insânia, insânia, e só insânia. Diante de tudo isso, desse clima de paixão prestes a explodir, não era de se estranhar que, a cada cena passada na tela, os torcedores reagissem como se estivessem assistindo ao jogo ao vivo!

Quando Paulo Cesar Caju deu um toque de classe, a turba alvinegra gritou em coro: PC! PC! PC! Quando Zico bateu uma falta que passou arrancando tinta do travessão, foi a vez de os flamenguistas soltarem um urro vindo do fundo d’alma: uhhh!!! Um gol do Gerson quase fez o cinema vir abaixo. Um gol, aliás, vindo de que lado fosse, era seguido de verdadeira apoteose.

Todos sabiam de cor e salteado o resultado dos jogos. Para os que não se lembrassem, um cartaz na porta do cinema ainda ajudava, anunciando os jogos (com placar e tudo) que seriam exibidos naquele horário. A maioria já havia assistido aos lances – boa parte mais de uma vez até– , e, no entanto, todos torciam como se fora a primeira vez.


Na condição de quem estava ali para analisar o fenômeno e quem sabe utilizá-lo como matéria prima para um conto futuro, resistia o quanto podia ao frenesi coletivo. Mas quando olhei pro lado e ouvi o Miguel mandando o Mozer (do Flamengo) ir tomar naquele lugar, percebi que o caso estava perdido.

Não havia volta. Aquelas pessoas reunidas na sala de cinema eram a nata da nata do manicômio, e o grande louco, na verdade, era eu. Eu era o próprio Bacamarte, era o estrangeiro, o estranho no ninho e só havia um jeito de salvar minha alma. E este jeito tomou forma quando surgiu a ocasião: um zagueiro do Flamengo deu um carrinho por trás, uma entrada criminosa no centroavante do Botafogo, e o juiz nem marcou falta. Então me levantei, convicto, e do alto da minha doida sanidade gritei a plenos pulmões: ladrão!

Cine Estação Botafogo

Pronto, estava decretada enfim minha entrada no país do delírio. Um garoto passou vendendo cerveja numa caixa de isopor e isso, claro, me pareceu perfeitamente normal, cheguei a perguntar onde é que ele estava que não havia chegado antes.

Comprei duas latinhas, dei uma para meu amigo. Quando houve um pequeno intervalo na projeção, brindamos como se nossas latinhas fossem grandes canecas de vinho tinto nas mãos de valorosos guerreiros vikings. E enquanto bebíamos olhávamos desconfiados um para o outro, na breve trégua que antecedia o segundo tempo.

Notas do Deixa Falar: O megafone do esporte


Esta linha de passe entre o futebol e o samba é antiga.  A música tema do Canal 100, Na Cadência do Samba, de autoria de Luiz Bandeira, foi lançada em 1956 sem grande repercussão.  Não tinha o futebol como tema, embora como todo bom samba transpire futebol.

Alguns anos mais tarde, escolhido por Carlinhos Niemeyer para prefixo e fundo musical do Canal 100, passou a ser um sucesso estrondoso.  O samba de Luiz Bandeira ficou definitivamente associado ao futebol, sendo rebatizado pela vida (por seu verso inicial) para Que bonito é.


                                          Na Cadência do Samba (Que bonito é) de Luiz 
                                          Bandeira, um deleite para os admiradores do 
                                          futebol-arte e de um jornal da tela que 
                                          deixou saudades.
  
E este é um filão inesgotável.  Não é o único grande samba com este título.  Em 1962, o gênio de Ataulfo Alves, em parceria com Paulo Gesta, cria um outro samba, um outro Na Cadência do Samba, gravado pelo próprio Ataulfo e Elizeth Cardoso.  Um clássico da MPB.

Com clara inspiração em “Fita Amarela”, de Noel Rosa, diz o samba de Ataulfo Alves: Eu quero morrer numa batucada de bamba / Na cadência bonita do samba.
  
Abaixo, vale a pena ver e ouvir o samba de Ataulfo na voz dos Novos Baianos:


A modernidade da cultura brasileira tem os pés fincados no futebol e no samba.

Nota de Zuca Sardan sobre o Canal 100:  A crônica do Flávio lembra filme do Fellini dos tempos do preto-e-branco. Acho que a torcida retrospectiva fez um furo no devir da História... os torcedores saíram do tempo, e  o fato do resultado ser conhecido não tem mais a menor importância. Eles  entraram num Presente-Contínuo, onde tudo o que foi vai ser agora.

Sobre Flavio Carneiro:

É botafoguense, além de escritor, roteirista e professor de literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).www.flaviocarneiro.com.br.










*Deixa Falar: o megafone do esporte, espaço de debates idealizado e editado por Raul Milliet Filho. 

Sobre os autores do Megafone do Esporte:


Ademir Gebara– graduado em História e Educação Física, mestre em História pela USP, PH D em História pela London School of Economics and Political Science, ex-diretor e coordenador de Pós da FEF Unicamp, professor visitante Universidade Federal da Grande Dourados.


Antonio Edmilson Rodrigues – é América, livre docente em História, professor da UERJ e da PUC-RJ, pesquisador de História do Rio de Janeiro, escritor de temas vinculados à história urbana, coordenador do projeto Conversa de Botequim e autor de João do Rio, a cidade e o poeta.


Bernardo Buarque – professor da Escola Superior de Ciências Sociais (FGV) e pesquisador do CPDOC/FGV. `É editor da coleção Visão de Campo (7 Letras). Em 2012, publicou o livro ABC de José Lins do Rego (Editora José Olympio).


José Paulo Pessoa – é botafoguense, ator, advogado, que achava o Didi mais impressionante que o Garrincha (que foi o maior que já vi!). Diretor, cantor e compositor do Bloco das Carmelitas, de Santa Teresa (RJ).


José Sebastião Witter – é torcedor do São Paulo, professor emérito da USP e professor normalista.


Luiz Carlos Ribeiroé professor do Departamento de História da UFPR e coordenador do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade.


Marcelo W. Proni – economista, doutor em Educação Física pela Unicamp, professor do Instituto de Economia da Unicamp, torcedor do Botafogo de Ribeirão Preto.


Marcos Alvito –  é carioca de Botafogo e Flamengo até morrer.  É um antropólogo que dá aula de História na UFF desde o longínquo ano de 1984.  Perna-de-pau consagrado, estuda um jogo que nunca conseguiu jogar direito: o futebol. Mas encara qualquer um no futebol de botão. Acaba de publicar A Rainha de Chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra (www.clubedeautores.com.br)


Ricardo Oliveira – é Vasco, jornalista, educador da prefeitura do Rio de Janeiro e pesquisador da História do futebol. Coordenador da pesquisa do livro Vida que Segue: João Saldanha e as Copas de 1966 e 1970.


Wanderley Marchi Jr – doutor em Educação Física e Sociologia do Esporte e professor da Universidade Federal do Paraná/BRA e da West Virginia University/USA.


Raul Milliet Filho – é botafoguense, mestre em História Política pela UERJ, doutor em História Social pela USP. Como professor, pesquisador e autor prioriza a cultura popular. Gestor de políticas sociais, idealizou e coordenou o Recriança, projeto de democratização esportiva para crianças e jovens. Escreveu Mario Monicelli e o samba carioca: um diálogo possível e irreverente, para o  XXVI  Simpósio Nacional da Anpuh( Associação Nacional de Historia) em 2011 e que pode ser acessado aqui: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308100822_ARQUIVO_MarioMonicellieosambacarioca.pdf.


Zuca Sardan (Carlos Felipe Saldanha) – É torcedor do Vasco, nasceu no Rio de Janeiro em 1933, mas vive em Hamburgo, na Alemanha. Estudou arquitetura, mas fez diplomacia. Estudou desenho, mas fez letras. Hoje dedica-se a desenhos, vinhetas, poesias e folhetins. Entre seus livros, estão: Ás de coletepoesias, desenhos e Osso do Coração.





Confira os outros artigos já publicados do Deixa Falar: o megafone do esporte:








A Rainha de Chuteiras

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Não é incomum um garoto brasileiro gostar e saber mais sobre os jogadores do campeonato inglês do que sobre os nossos “brazucas”. Há até fã-clubes das principais equipes, como Manchester, Liverpool e Chelsea espalhados por nossas terras. Para muitos, a Liga dos Campeões é mais importante (e talvez até mais assistida) do que o Campeonato Brasileiro.

Marcos Alvito, professor de história e doutor em antropologia, apaixonado pelo futebol, começou essa ligação com o futebol inglês muito tempo atrás quando os ídolos dos gramados da Rainha eram outros.

Hooligans

Decidido a conhecer e a entender melhor tudo isso, Alvito resolveu estudar para valer o futebol inglês, especialmente, o fenômeno dos “hooligans”, torcedores organizados que levaram medo e terror às arquibancadas.

Nada de teoria. Marcos Alvito foi “beber direto da fonte” e o resultado pode ser encontrado e lido no belo “A Rainha de Chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra” (Clube dos Autores, 2013). Você, leitor, mesmo que não curta muito o futebol inglês, vai gostar de conhecer os bastidores do berço do futebol mundial.

Abaixo, Literatura na Arquibancada destaca o texto de apresentação e um trecho do capítulo 6, exatamente sobre os “hooligans”. Mas há também outros trechos que podem ser “degustados” antes da compra no link http://www.clubedeautores.com.br/book/139046--A_Rainha_de_Chuteiras

Apresentação ou de como a rainha calçou chuteiras
Por Marcos Alvito

Kevin Keegan

Até hoje me lembro dela. Era uma caixinha de papelão branco. Na tampa, eu havia recortado e colado uma foto da seleção inglesa pisando o solo sagrado de Wembley. Lá dentro, meus craques de galalite, o material com que eram feitos os times de botão naquela época. Muita atenção para o número 7, o diabólico ponta-direita Kevin Keegan. Eu devia ter uns doze anos e sonhava com o futebol inglês. Claro que gostava do futebol brasileiro e também tinha outro time com a seleção de 70. Destaque para Tostão, um botão amarelado e mais alto do que os outros, mas que gostava de fazer gols de longe. Mas o futebol da terra da rainha não me saía da cabeça.

O tempo passou, os botões ficaram guardados na caixinha. Eu me formei em História, tornei-me professor universitário e doutor em Antropologia. Em 2005 comecei uma pesquisa chamada "A paixão vigiada". Seu objetivo era comparar o policiamento de torcedores no Brasil e... adivinhem?  Na Inglaterra. Afinal os ingleses tinham enfrentado e aparentemente resolvido o problema dos "hooligans". Fiz dois anos de pesquisa no Brasil e em julho de 2007 fui para a Inglaterra passar um ano. A pesquisa me "obrigou" a assistir jogos de todo o tipo, desde Liverpool x Arsenal até partidas da 8ª ou 9ª divisões. Assisti a jogos da Champions League, da FA Cup e do Campeonato Escocês. Acompanhei até mesmo as aventuras de um time de futebol feminino. Entrevistei policiais e torcedores, fui com ambos a jogos no frio, na chuva e até na neve.


Este livro é um relato daquele ano maravilhoso na forma de pequenas crônicas, sobre os hooligans, sobre os fanzines, sobre os clubes semi-profissionais, sobre projetos educacionais utilizando o futebol, sobre a atuação da polícia, as grandes rivalidades e por aí vai. Enfim, é um livro sobre a cultura do futebol inglês. Há também uma ou duas crônicas sobre outras paixões inglesas: as apostas, o rugby, o cricket... Sempre em um enfoque antropológico e bem humorado.

O leitor também vai ganhar oito "faixas bônus" com uma breve história do futebol inglês, das batalhas campais da Idade Média até a Premier League. É por aqui que começamos o nosso A Rainha de Chuteiras - um ano de futebol na Inglaterra.

Os hooligans e a grande crise do futebol inglês
(capítulo 6, pp. 40-42)
Por Marcos Alvito


No início da década de 1960, os jovens estavam revolucionando a maneira detorcer nos estádios britânicos. Passaram a se concentrar nos terraces localizados atrás do gol, onde os ingressos eram mais baratos e a distância da parte “respeitável” do público era maior.

“You will never walk alone”, uma música tocada por um grupo local, Gerry and the Pacemakers, foi transformada pelos torcedores do Liverpool F.C. em um verdadeiro hino do clube. Cantavam, criavam gestos e roupas próprios, sobretudo para diferenciarem-se dos adultos, mas também dos outros grupos de jovens. Esses estilos viajavam rapidamente pela mídia, influenciando outros jovens por todo o país.

Os terrace ends são cada vez mais exclusivamente frequentados porjovens, que começam a percebê-los como um território particular, onde eles afirmavam sua identidade e seus valores. As rivalidades futebolísticas eram apropriadas por esses jovens, resultando em disputas e conflitos entre os grupos. Antes de mais nada, havia a agressão verbal do tipo:

        “Oxford boys we are here
        Shag your women
        Drink your beer”

        (Chegaram os caras de Oxford
        Transamos com suas mulheres
        E bebemos sua cerveja)

        Ou então:

        “You're gonna have your fuckin' heads kicked in”
        (Vocês vão ter suas cabeças chutadas)


Além de ofensas, xingamentos e ameaça, as brigas entre torcedoresrivais, as invasões de campo e o arremesso de objetos tornavam-se a cada dia mais frequentes. Já em novembro de 1963, o Everton F.C. é o primeiro clube a colocar cercas atrás do gol, chamadas pelos jornais de “hooligan barriers” (barreiras contra os hooligans).  Ao mesmo tempo, estava havendo uma diminuição do público que frequentava o estádio, causada pelas transformações em curso na sociedade, mas também agravada por esse aumento na violência.

Confrontos entre grupos de jovens ocorriam também fora do futebol, e o público começa a ficar extremamente sensível a este tipo de notícia, o que é amplamente explorado pela imprensa, cada vez de forma mais sensacionalista. Os jornais do final da década de 1960 passaram a vender a idéia de que havia uma “guerra” em curso nos estádios, o que sem dúvida contribuiu para afastar ainda mais o público bem-comportado e para tornar o sábado à tarde ainda mais excitante para os jovens.

Começava assim um círculo vicioso que logo iria resultar na criação de pequenos grupos de jovens torcedores voltados exclusivamente para a violência e o combate entre si, as chamadas “firms” ou “crews”. No início da década de 1970 os jornais populares já publicavam rankings dos grupos de torcedores mais violentos. E as “firms” começaram a ousar cada vez mais, buscando aumentar a sua “reputação”. A violência no futebol começa a fazer parte do cardápio de atrações da televisão que começa a focalizar os confrontos entre as torcidas, os palavrões e desafios obscenos em um verdadeiro estímulo ao à agressividade exibicionista.


De início a “brincadeira” era tomar o end da torcida adversária, pois a invasão do território inimigo era a suprema humilhação dos contrários. Mas a polícia começa a prever estes incidentes e a prender os envolvidos. A minoria de jovens interessados somente em brigar começa a planejar outros tipos de ação, muitas vezes encontrando os grupos rivais fora do estádio. Ao mesmo tempo, começam a ser tomadas medidas para prevenir a violência, mas que transformam os estádios em verdadeiras prisões: são levantadas cercas em torno de todo o campo e o estádio é dividido em pens(“chiqueirinhos”) separados por grades.

De ambos os lados, as torcidas estavam enjauladas. Esta divisão e segregação dos torcedores aumenta ainda mais o clima e as manifestações de rivalidade e de agressão verbal. Os torcedores visitantes passam a ser escoltados pela polícia desde o seu desembarque dos trens e marcham como se fossem um exército inimigo até o local do jogo. Cada vez mais a polícia usa cães e cavalos, é montada uma verdadeira “operação de guerra” a cada sábado. Os torcedores passam a ser revistados à entrada, mas os interessados em violência conseguem ludibriar a polícia com uma maligna criatividade: afiam moedas até torná-las pontudas, enrolam jornais até transformá-los em armas e por aí vai. A presença de enormes contingentes policiais o clima belicoso tornam tudo aquilo ainda mais atrativo para os torcedores patologicamente violentos, ao mesmo tempo em que a frequência aos estádios cai assustadoramente.

Sobre Marcos Alvito:

É carioca de Botafogo e Flamengo até morrer.  É um antropólogo que dá aula de História na UFF desde o longínquo ano de 1984. Perna-de-pau consagrado, estuda um jogo que nunca conseguiu jogar direito: o futebol. Mas encara qualquer um no futebol de botão. Participa, aqui, no Literatura na Arquibancada, do “Deixa Falar: o megafone do esporte”, criado e editado por Raul Milliet Filho.

José Roberto Torero: "Nove contra o 9"

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Mais um livro da dupla José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta chega ao mercado: “Nove contra o 9” (Editora Objetiva). E como sempre, leitura prazerosa. “Ele”, Zé Cabala, eterno personagem das histórias de Torero está de volta. Um livro obrigatório na estante dos amantes da boa literatura esportiva. Literatura na Arquibancada destaca a sinopse e trechos da obra disponibilizados também na página da editora Objetiva. http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=1208 . As artes utilizadas neste artigo (Rogério Doki) podem também ser encontradas no blog de José Roberto Torero (arquivo 2007) http://blogdotorero.blog.uol.com.br/arch2007-12-01_2007-12-31.html

Sinopse (da Editora):

Pimenta e Torero, a dupla.

A tabelinha entre José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta retorna com um romance policial dotado de duas marcas registradas da dupla: o humor inteligente e a paixão pelo futebol. Mas também estão de volta em Nove contra o 9 o vidente Zé Cabala.


Um cartola enciumado. A enlouquecedora mulher do cartola. A enlouquecida filha do cartola. O eterno reserva do centroavante. A alegre viúva. Um irado jornalista esportivo. Um apaixonado torcedor-símbolo. Um irmão humilhado. Um zagueirão viril e gay do time adversário. Estes são os nove suspeitos da morte de Beleza, o maior ídolo do Banânia Esporte Clube, assassinado em pleno campo após marcar seu milésimo gol.

Beleza era amado pela cidade inteira – ou quase. Alguns habitantes da provinciana Banânia e das redondezas tinham suas razões para querer ver o camisa 9 comer o gramado pela raiz. E foi o que aconteceu, justamente em seu momento de maior glória. Inconformadas com a morte de um dos mais fiéis clientes, as prostitutas locais decidem contratar uma dupla que passava por acaso pela cidade.


E a dupla era justamente Zé Cabala e Gulliver: o vidente especializado em prever os resultados do futebol, acompanhado por seu auxiliar – baixo em estatura, mas alto em QI. Diante das contradições que aparecem durante a investigação do caso, eles terão de usar todo o seu jogo de cintura para esclarecer o mistério.


Nove contra o 9 não é um romance convencional. O projeto foi ao ar pela primeira vez através do blog de José Roberto Torero, onde o futebol é assunto de destaque, em formato de folhetim. O esporte bretão não é novidade para a dupla, que, além de escrever constantemente sobre o tema, é roteirista de (fdp), série do canal HBO que acompanha os passos de um árbitro brasileiro.

Para esclarecer o crime cuja investigação marca as páginas do romance, Torero e Pimenta não poupam Zé Cabala e Gulliver do envolvimento em circunstâncias de perigo, além de trocadilhos infames e situações cômicas. Com grandes doses de humor, futebol e aventura policial, os autores prendem o leitor até a última página.

Capítulo 1
A morte do matador


Sou um anão. Anão, não. Deficiente vertical. Meu nome é Gulliver. E não é apelido. É que meu pai gostava de fazer piadas. Por conta dessa sua gracinha, desde pequeno (desculpe o trocadilho) tive que aguentar gracejos do mais baixo nível (desculpe este também).


Trabalho como assistente de um sujeito chamado Zé Cabala. Ele é que é o cérebro da equipe. Para você ver como estamos mal. Formamos uma dupla singular. Zé Cabala é magro e alto, e eu sou razoavelmente rechonchudo, de forma que, de longe, parecemos um “10”, ou melhor, um “1o”.

Você já deve ter ouvido falar de Zé Cabala. Foi um célebre nigromante ludopédico. Ou seja, ele adivinhava os resultados dos jogos para apostadores, benzia atletas, recebia espíritos de craques do passado, fazia trabalhos para clubes ganharem campeonatos etc. Tivemos fregueses famosos, como aquele técnico com nome de país pequeno. Não, não é Liechtenstein.

Mas chega de introdução. Vamos aos fatos. No último Campeonato Brasileiro, Zé Cabala foi contratado por torcedores de um certo time para que não caísse para a segunda divisão. Ele não caiu. Despencou. E a torcida não aceitou muito bem as desculpas. Na verdade, mal terminou o jogo e recebemos uma ligação avisando que iriam quebrar os nossos ossos.

Meus ossos são pequenos mas tenho certo apego a eles, de modo que sugeri  a Zé Cabala que  saíssemos da  cidade. Cinco minutos depois entrávamos na Vovó (que é como chamamos nossa Kombi 68) e disparávamos pela estrada.

Disparávamos é modo de dizer, porque ela não passa dos cinquenta. A ideia era ficar um tempo no Paraguai, na Bolívia ou em outro paraíso tropical, mas nosso pneu furou em Banânia, uma daquelas cidades tão pequenas que não têm semáforo nem loja de R$ 1,99.

Enquanto trocava o pneu, Zé Cabala ligou o rádio para escutar alguma coisa. Estavam transmitindo um jogo de futebol.


“Que demais, ouvintes, que demais! Fogos estouram e bandeiras tremulam! É o esquadrão aurinegro que vem adentrando o gramado do Pacóvio Costa! É dia de decisão: Banânia Esporte Clube de um lado, Grêmio Recreativo Laranjal do outro! Vai que vai, Alaor!”

“Vou que vou, Nestor! Mas olha, está a maior confusão aqui embaixo. É todo mundo em volta dele.”
“Você está falando do maior ídolo da história do Banânia?”
“Do próprio.”
“Aquele que já fez 999 gols pelo clube?”
“Ele mesmo.”
“E qual é o nome dele, Alaor?”
“Bê de bola, e de estádio, ele de lance, e de escanteio, z de zorra e a de habilidade. É Beeeeeeeeleza!”
“Que demais!”
“Até o juiz está pedindo autógrafo. E nesse momento o capitão da equipe adversária oferece um galho de laranjeira para ele. Eu vou tentar me aproximar. Não empurra, cacete!”
“Oi, Alaor?”
“Vai você se foder!”
“Olha o microfone aberto, Alaor.”
“Peço desculpas ao ouvinte, mas está complicado trabalhar  aqui. Deve ter mais gente no gramado do que na arquibancada, Nestor.”
“Eu sei, eu sei, é toda uma ansiedade, é toda uma expectativa em torno da marcação do gol mil. A cidade está em polvoro... Bzzzzzzzzz!”
“Que foi isso?”, perguntou Zé Cabala.
“O rádio pifou.”
“Que chato...”
“Chato é trocar pneu.”

Naquela altura eu já tinha tirado o pneu furado, colocado o estepe no lugar e girado a manivelinha até minhas mãos ficarem cheias de bolhas.

“Você se importa de terminar o serviço?”, perguntei.

Quando Zé Cabala apertou as porcas, o rádio voltou a funcionar. Milagre? Não. Carro velho é assim, você aperta uma coisa e liga outra.


“Um minuto de bola rolando. Viriato cerca, Fefê se livra; tem Beleza na entrada da área. Fefê lança, Beleza recebe a bola, domina, chuta... E é gol! Gooooooooooooool! É mil, é mil! Uma cla-mo-ro-sa falha do goleiro Nove Dedos! Beleza corre para o alambrado. É mil! Ele dá socos no distintivo do Banânia! Que demais! Agora está sendo carregado nos ombros! Nunca um atacante da quinta divisão obteve essa marca! Mil! Eu repito: mi... minha nossa Senhora! O que aconteceu?”

“Ele caiu no meio do gramado.”
“Vai até lá, Alaor.”
“A polícia não deixa, Nestor. Daqui da beira do gramado não dá para ver nada. Os companheiros estão em volta dele. Sai da frente, pessoal!”
“Deve ser a emoção, Alaor. Não é todo dia que se faz mil gols.”
“Com certeza, Nestor, com certeza. O doutor Penteado está indo para lá. Foi emoção, doutor?... Ele passa correndo. Daqui a pouco nós pegamos o depoimento dele.”
“É o Capacho ali no aquecimento, Alaor?”
“Exatamente, Nestor. Tudo indica que o Beleza não tem condições de seguir jogando.”
“Está me parecendo distensão, Alaor. Na hora do chute ele estava meio desequilibrado.”
“Agora a polícia forma um cordão de isolamento, a gente não consegue se aproximar... Ah, meu Deus! Tem jogador chorando ali!”
“É de sirene esse barulho?”
“Acho que é. Vou tentar falar com o Fefê. Oi, Fefê, por favor... Não, o Fefê não quer falar. Vou tentar o Mingau.”
“Olha a ambulância à sua direita, Alaor.”
“Pois é, Nestor, a ambulância se dirige até o local. Ela está parando agora e os funcionários descem com a maca! Só um minuto que o doutor Penteado vem vindo. Doutor Penteado, por
favor, uma palavrinha.”
“Ah, Alaor, é uma tragédia, uma tragédia... Eu peço a todos que tenham força espiritual nesse momento, porque o nosso querido Beleza acaba de mor... Bzzzzzzzzzz!”

Capítulo 2
Um velório sem lágrimas nem defunto


“E agora? Não deu para saber o que aconteceu com o cara”, lamentou Zé Cabala.

“Como não? Você não ouviu o locutor?”
“Ouvi. Ele disse: ‘o Beleza acaba de mor...’”
“Então?”
“Esse ‘mor...’ pode ser muita coisa. Vai ver ele acabou de ‘mor...’der a língua e não pode dar entrevista.”

Trabalho há muito tempo com Zé Cabala, mas confesso que até hoje não sei se ele é um sujeito brilhante que se faz de bobo ou um tolo que se faz de gênio. Olhei para ele para ver se descobria a resposta e vi que estava dando cabeçadas no rádio para que voltasse a funcionar. O pior é que deu certo.

“Que coisa incrível, Alaor, quer dizer que nosso ídolo está morto?”
“Pois é, Nestor, o Beleza agora vai ver o gramado pelo lado da raiz.”
“Caramba, o cara morreu mesmo!”, disse Zé Cabala dando um soco na direção e fazendo o rádio parar de funcionar mais uma vez.
“Isso pode ser interessante para nós”, pensei e falei.
“Por quê?”
“Ora, por quê! Porque vamos até o velório oferecer seus serviços de carteiro espiritual, de internet das almas. Aposto que a viúva vai querer falar com o falecido.”

Como estávamos sem dinheiro no bolso nem comida no estômago, na mesma hora Zé Cabala aprovou a ideia. Entramos na Kombi laranja-ferrugem (meu parceiro evita tirar a ferrugem porque tem medo de que não haja mais carro debaixo dela) e fomos até o Velório Municipal. Foi fácil achá-lo. Era só seguir a multidão.

Do lado de fora o lugar mais parecia uma feira. Havia barraquinhas de sucos naturais, de frutas, pipoqueiros, sorveteiros, vendedores de cachorro-quente etc. Mas a maioria dos vendilhões comercializava um item especial: camisas do Banânia.


Aliás, aqui vai uma descrição do manto sagrado: a cor principal é o amarelo berrante, porém a gola, as mangas e os números são pretos. O distintivo é o desenho de uma folha de bananeira, com uma banana de cada lado, costurada à moda antiga, com linha preta. Ao pé dessa folha, a sigla B.E.C., que quer dizer Banânia Esporte Clube. Não vi ninguém vendendo o calção do clube ou seus meiões, mas aqui fica a nota para a posteridade: ele é preto; eles, amarelos.


A multidão de torcedores foi mantida do lado de fora por um cordão de isolamento. Todos estavam tristes e muitos vertiam lágrimas. Expliquei que éramos assessores espirituais e nos deixaram entrar. Quem iria barrar um anão e um cara de turbante?

O ambiente do lado de dentro era o oposto do do lado de fora. Havia pouca gente (umas quarenta pessoas) e quase nenhum clima de pesar. Outra coisa estranha é que não havia corpo no caixão. No lugar de honra, solitária, via-se a viúva, uma mulher magra e de longos cabelos negros. Vez por outra, alguém lhe transmitia os pêsames.

Estávamos caminhando em direção a ela para oferecer nossos serviços quando um sujeito deu-me uma barrigada na testa. Era um japonês que usava um cavanhaque à la barba de bode. Após subir numa cadeira, ele começou a falar. Falar não, berrar:

“Pessoal, olhem aqui, prestem atenção: para quem não me conhece, eu sou o delegado Fukuda. É o seguinte: quero ver todo mundo circulando. É isso mesmo, podem ir embora.
O corpo do Beleza não vem para cá. Ele vai passar a noite no Instituto Médico Legal. Foram feitos uns exames preliminares e, bom, eu não deveria falar de uma coisa que ainda é segredo de investigação, mas o fato é que ele foi... assassinado.”

Um “oh!” ecoou pelo recinto. “Isso mesmo. Veneno!”, completou o sujeito. Puxei a manga da camisa de Zé Cabala e perguntei:
“Ainda vamos oferecer os préstimos espirituais para a viúva?”
“Faremos melhor que isso”, ele respondeu. “Vou oferecer nossos serviços de detetives particulares.”
“Bom, eu até já vi uns filmes e li uns livros sobre isso, mas você entende do assunto?”, perguntei.
“Fiz um curso por correspondência.”
“Sério?”
“Sério. Li quase metade da apostila.”


Então Zé Cabala subiu numa cadeira e falou em alta voz:

“Por favor, um minuto da sua atenção. Sou o detetive Zé Cabala e este é Gulliver, meu altivo auxiliar (ah, como odeio esses trocadilhos!). Estávamos de passagem por esta aconchegante cidade quando soubemos deste triste acontecimento. Como somos especialistas em crimes esportivos, gostaria de oferecer nossos serviços aos interessados e em especial à senhora viúva.”
Ela nem titubeou e respondeu um seco “Não, obrigada”.
“Não!?”, espantei-me e interroguei-me. “A senhora não quer saber quem envenenou seu marido?”
“Não.”
“Nem como?”
“Não.”
“Nem quando?”
“Não.”
“Nem por quê?”

Sobre os autores:

José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta já escreveram diversas histórias para crianças. Mas não fazem só livros. Torero é de Santos. Considerado um dos grandes talentos da nova ficção brasileira, é autor do best-seller O Chalaça (prêmio Jabuti em 1995) e de Xadrez, truco e outra guerras (Coleção Plenos Pecados), entre outros. Foi um dos roteiristas do curta-metragem Uma história de futebol, indicado ao Oscar em 2001, e que se tornou livro infanto-juvenil em 2002, conquistando o prêmio de Altamente Recomendável pela FNLIJ. Em parceria com o escritor Marcus Aurelius Pimenta, escreveu Terra Papagalli e Os vermes. Santista, durante seis anos escreveu uma coluna sobre futebol na Folha de S. Paulo.


Placar: a história de uma revista

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Ele ficou conhecido como “Homem Abril”. Cláudio de Souza é um daqueles homens que desapareceram da “grande mídia” brasileira. Um assessor direto do dono da maior editora brasileira durante décadas, Cláudio era chamado constantemente por Victor Civita, dono do império Abril Editoras, para implantação de novos projetos de revistas. Muito mais do que isso, durante 25 anos, Cláudio foi um dos funcionários mais destacados da Abril, o sétimo, oficialmente. Entre março de 1951 e setembro de 1975, ele passou por quase todos os departamentos da empresa e durante 8 anos trabalhou como assessor pessoal do seu fundador, o americano Victor Civita.

Cláudio de Souza (centro)

Cláudio era apaixonado por quadrinhos e durante décadas lançou gibis que existem ainda há 30, 40, 50 anos, como “Mickey”, “Zé Carioca”, “Mônica”, “Cebolinha” e muitos outros. 

Entre 1971 e 1974 quando esteve à frente do Departamento de Publicações Infanto-Juvenis da Abril, triplicou a tiragem mensal das revistas, que pulou de 1,4 milhão para 4 milhões.



Edição número 1 de Placar

E foi assim, pouco antes de se tornar um fenômeno no mercado de quadrinhos, que Cláudio se tornou também criador de “Placar”, a revista esportiva de maior prestígio do país durante décadas. 

Cláudio era apaixonado por futebol. São-paulino assumido, chegou a ser um dos sócios fundadores do clube. 

A história que você, leitor, acompanha abaixo foi relatada no espetacular livro escrito por Gonçalo Junior, “O homem Abril – Cláudio de Souza e a história da maior editora brasileira de revistas” (Opera Graphica Editora, 2005). 

O mais surpreendente neste trecho é a declaração de Cláudio de Souza sobre o verdadeiro ano de criação da revista Placar, em 1952. 

Cláudio de Souza, partiu em junho de 2012, quando tinha 84 anos de uma vida repleta de histórias na mídia brasileira.

Placar
Por Cláudio de Souza

Cláudio de Souza (direita), Victor Civita (centro) e Gilberto Couverso.   

Em março de 1970, Cláudio de Souza atingiu o auge como funcionário da Editora Abril. Seu nome figurava, então, entre os cinco mais importantes do grupo, como vice-presidente do departamento de livros didáticos. Mais uma vez, com o núcleo sob sua responsabilidade encaminhado, ele viu o comando ser tirado de suas mãos e entregue a um dos executivos da empresa. A justificativa era a de sempre: novos desafios o aguardavam. Desta vez, porém, ninguém era melhor que ele para a missão.

Notório apaixonado por futebol, ele foi designado por Victor e Roberto Civita para dirigir o novo lançamento da editora: a revista esportiva “Placar”. A história da publicação começara, na verdade, dezoito anos antes, em 1952, durante os Jogos Olímpicos de Helsinque, na Finlândia. O time de futebol do Brasil fez boa campanha e virou orgulho nacional, uma esperança de volta por cima depois do fiasco da Copa de 1950, embora a seleção olímpica não viesse a disputar a final. Em compensação, Ademar Ferreira da Silva voltou para casa com a medalha de ouro no salto triplo.


Empolgado com o desempenho dos brasileiros na competição, Cláudio sugeriu a Civita a criação de uma revista esportiva. “Falei-lhe da paixão do brasileiro pelo futebol e como eu imaginava a publicação: com fotos, muitas fotos, muitas cenas de gols; sequências fotográficas conseguidas com máquinas modernas; textos curtos e muitas charges – um mundo, o mundo dos esportes”.

O então assessor sugeriu até o título, “Placar”, que Civita teria anotado cuidadosamente numa folha de papel. Quando o assistente terminou de falar, o fundador da Abril teria se limitado a dizer: “Faz um boneco da revista e me mostra”. Algumas semanas depois, Cláudio apresentou-lhe o modelo. Civita imediatamente mandou registrar o nome “Placar” no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Depois, folheou cuidadosamente o projeto e deu o veredicto: “A ideia é ótima, o boneco é muito bom, mas ainda não estamos prontos para fazê-la, falta-nos estrutura”. O auxiliar comentou depois: “Mesmo assim, eu estava eufórico, metade do caminho estava vencido. Ele gostara da proposta e queria fazer a revista. Agora era só esperar”.


E que espera. Quase duas décadas. Mas a primazia foi mantida. “Placar” virou realidade pelas mãos de seu idealizador. Dois fatos impulsionaram o lançamento da revista: a Copa do Mundo de 1970 e o furor causado no país com a implantação da Loteria Esportiva pela Caixa Econômica Federal, que tinha como mote “Aprenda a ficar tão rico quanto Pelé”. “Apostou-se no sucesso da loteria”, recordou Cláudio. Tanto que a seção mais lida de “Placar” nos primeiros anos seria justamente a de prognósticos dos resultados. Apostadores, dirigentes de clubes e diretores de federação festejaram a loteria porque parte do dinheiro arrecadado iria para o financiamento dos esportes.

Quando Cláudio foi chamado à sala de Civita para conversar com ele e Roberto sobre um novo projeto da Abril, o dono da editora literalmente tirou o mesmo projeto de “Placar” de 1952 de dentro do que chamava de sua “gaveta de boas ideias”. O lançamento foi preparado em segredo de estado. Cláudio organizou um grupo de trabalho para atualizar a sugestão da década anterior, chefiado por Paulo Patarra, que fora redator-chefe de “Quatro Rodas” – quando Mino Carta era o diretor – e, depois, ocupou o mesmo cargo em “Realidade”. Quando assumiu “Placar”, Patarra era diretor de Novos Projetos da editora.

1º volante da Loteria Esportiva

No começo das discussões, a ideia central era fazer de “Placar” uma espécie de “órgão oficial” da Loteria Esportiva, a única a fornecer os “comprovantes dos prognósticos” com suas três colunas – a da direita, a da esquerda e a do meio. O plano de Civita era, no mínimo, inusitado. Para não dizer absurdo ou ingênuo. Ele esperava convencer a Caixa Econômica a atrelar à revista, com exclusividade, os prognósticos e demais informações sobre a loteria. Ou seja, os jogadores teriam de comprar “Placar” para acompanhar a loteca.

Os demais órgãos da imprensa, claro, agiram rápido e transformaram o assunto em um tema de utilidade pública. Assim, passaram a ter direito também aos dados da Caixa. Nem por isso o entusiasmo de Civita pela nova publicação arrefeceu. Convenceu-se de que o futebol, por si só, era suficiente para manter o interesse do leitor. E acrescentou ao lançamento um brinde com o propósito de atrair esse público: deu como cortesia uma medalha metálica dourada com a efígie de Pelé.

Civita tratou pessoalmente da promoção. Sem falar com ninguém, arranjou um escultor para conceber a moeda. Conseguiu também um fornecedor para prensá-la sem custos. Só depois que o amuleto estava estocado no depósito da gráfica, o empresário revelou o acordo que fizera com Pelé. Surpresa tiveram os funcionários da distribuição quando viram chegar caixas com milhares de moedas que estampavam o rosto do craque.


E, assim, foi lançado o número 1 da revista, em março de 1970, com o brinde colado na capa. Internamente, trazia um time respeitável de redatores, repórteres e fotógrafos: José Maria de Aquino, Woile Guimarães, Hedyl Valle Júnior, Dante Matiussi, Michel Laurence, Moacir Azedo, Hamilton de Almeida Filho e Lenir Martins, entre outros. No meio da equipe havia vários prêmios Esso de Jornalismo e estrelas dos tempos de “Realidade”. “Era uma equipe de campeões que se mostrou um time campeão”, afirmou Cláudio, que dirigiu a revista no primeiro ano.

A redação de “Placar” escrevia e fotografava para o público do futebol que o editor definiu como o mais democrático dos leitores. “É assim porque atingia todas as classes sociais e todos os bolsos – intelectuais, analfabetos, ricos, pobres, gente bonita e feia, todos os crentes e descrentes”. A revista misturou inicialmente reportagens de dentro e fora do campo, com a cobertura dos jogos e detalhes dos bastidores.


Na opinião de Cláudio, os dois melhores trabalhos de sua fase à frente da revista foram as entrevistas exclusivas com João Saldanha e Pelé e a série de reportagens inventadas sobre a venda em bloco, para a Arábia Saudita, de todos os jogadores do Santos, inclusive de Pelé.

Saldanha acabara de ser demitido do cargo de técnico da Seleção Brasileira de futebol, a mesma que seria tricampeã no México meses depois. Foi nessa época que ele cunhou a expressão “feras” no futebol brasileiro. “Quero onze feras em campo!”, disse ele pouco antes da Copa. O treinador, entretanto, sofreu forte pressão da imprensa e, consequentemente, do público porque ousara barrar Pelé num jogo-treino. E deixou o cargo, mas saiu atirando. Os disparos foram repercutidos com exclusividade na entrevista que Pelé concedeu a “Placar”.

A reportagem sobre a suposta venda do time do Santos foi uma jogada da revista, segundo seu editor, para mostrar o despreparo e as proverbiais más intenções dos cartolas nacionais. Tudo começou quando um repórter freelancer contratado pela revista, que tinha cara e jeito de árabe – inclusive falava árabe porque era descendente – se apresentou ao clube santista com uma proposta “oficial” para aquisição de alguns craques em nome de um clube saudita.


Os cartolas engoliram a pílula e aí começou o leilão da venda dos “passes” dos jogadores e eventuais “comissões” que eles embolsariam por fora. A farsa foi alimentada por várias edições da revista e expôs ao público o mundo da cartolagem. Quando “Placar” revelou a verdade sobre a história no capítulo final, a editora deu um “sumiço estratégico” no colaborador, até a poeira baixar.

Com seu estilo agressivo, sem limitar-se à tietagem dos jogadores, “Placar” logo conseguiu merecido destaque no jornalismo esportivo brasileiro. Padecia, no começo, porém, de um mal congênito: por necessidade da gráfica da Abril, fechava às 19h do domingo, mas só seria impressa na segunda e distribuída na terça.

Como a maioria dos jogos terminava exatamente nesse horário em praticamente todos os campeonatos estaduais ou nacional, a revista não informava os resultados. A parte da cobertura e a atualidade dos fatos chegavam ao leitor frias ou incompletas. E como não era toda semana que aparecia um “empresário” árabe querendo comprar times inteiros, levou-se algum tempo até que as vendas empatassem com os custos.


Não houve tempo, porém, para que Cláudio de Souza esquentasse a cadeira de editor de “Placar”. Doze meses depois, Civita tinha para ele um novo desafio: expandir o departamento de quadrinhos da editora, a menina dos seus olhos. Finalmente, o faz-tudo da Abril voltava a cuidar de sua grande paixão.

Nos quatro anos seguintes, com ousadia, Cláudio literalmente revolucionaria o mercado de quadrinhos no Brasil. Enquanto as grandes concorrentes do mercado declinavam, a editora paulista triplicaria a tiragem e assumiria a posição de maior editora de gibis do país. Desbancou em vendas a Ebal, de Adolfo Aizen, e a Rio Gráfica Editora, de Roberto Marinho.

Ao assumir o posto, Cláudio finalmente cuidaria do que mais gostava no mundo editorial: as histórias em quadrinhos. E se encheu de entusiasmo novamente. Só não podia imaginar que aquela seria sua última missão como “Homem Abril”.

200 mil visitas ao Literatura na Arquibancada

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Literatura na Arquibancada agradece e comemora a superação da marca de 200 mil visitas. Se levamos um ano para atingir a marca de 100 mil visitas, agora, em menos de 3 meses, superamos a marca dos 200 mil !!!! Obrigado a você, leitor.

Abaixo, reveja alguns posts que nos ajudaram a atingir essa marca importante para um blog sobre literatura esportiva.


A paixão de Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores do mundo, pelo futebol:


Um livro recordista de acesso no Literatura na Arquibancada: “Telê e a Seleção de 82: da arte à tragédia”:


Uma série sensacional sobre “histórias em quadrinhos”, na literatura esportiva, que aliás, em janeiro, tem o seu “Dia Nacional das Histórias em Quadrinhos”:



A homenagem ao mestre do jornalismo esportivo, Luiz Mendes:

A polêmica sobre quem seria o verdadeiro “pai do futebol”: Thomas Donohoe ou Charles Miller?
http://www.literaturanaarquibancada.com/2012/04/cruzando-os-bigodes.html





Outro post recordista no LA foi sobre o escritor Jorge Amado, um dos maiores do país, no ano de seu centenário:


Música e futebol, para o LA, também pode render boa literatura. O artigo sobre a paixão da “gordinha” simpática que encantou o mundo da música, Adele, pelo futebol, é outro recordista por aqui:
 



30 anos sem Mané Garrincha

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Desenho feito por Paulo Mendes Campos  
E lá se vão 30 anos da morte de um gênio do futebol mundial. No dia 20 de janeiro de 1983, partiu para o céu Mané Garrincha. Literatura na Arquibancada destaca abaixo a crônica de um dos maiores escritores do país, Paulo Mendes Campos, botafoguense de quatro costados. 

O texto faz parte do livro mais que recomendado “O gol é necessário – Crônicas Esportivas” (Editora Civilização Brasileira, organização Flávio Pinheiro).

No ano passado, fizemos por aqui algumas homenagens a Mané e que você, leitor, pode acessar, nos links encontrados no final deste artigo. 

Outra dica interessante é um artigo do Instituto Moreira Salles, mantenedor da obra do escritor Paulo Mendes Campos: http://www.blogdoims.com.br/ims/garrincha-o-rimbaud-do-futebol-%E2%80%93-por-elvia-bezerra-e-julia-menezes/




Mané Garrincha
Por Paulo Mendes Campos


Quando ele avança tudo vale. A ética do futebol não vigora para Mané. O fair-play exigido pelos britânicos é posto à margem pelos marcadores, pelos juízes, pelas torcidas. Regras do association abrem estranhas exceções para ele. Uma conivência complacente se estabelece de imediato entre o árbitro e o marcador, o primeiro compreendendo o segundo, fechando os olhos às sarrafadas mais duras, aos carrinhos perigosos, aos trancos violentos, às obstruções mais evidentes. Quando esses recursos falecem, o marcador em desespero, sem medo ao ridículo, agarra a camisa de Garrincha. Aí o juiz apita a falta, mas sem advertir o faltoso: o recurso é limpo quando se trata de Garrincha.

“Todos os jogadores do mundo”, ensina professor Nilton Santos, “são marcáveis, menos seu Mané. Mané em dia de Mané só com revólver”. Nilton é o mais consciente dos fãs de Garrincha, costumando dizer que, se ainda jogou futebol depois dos trinta anos, foi por ser do mesmo time de seu Mané.

Quando Garrincha apareceu para treinar em General Severiano, a diretoria andava louca atrás dum ponta-direita. Nilton Santos, um pouco por comodismo, outro tanto por humorismo, marcava os candidatos à posição no grito. O ponta pegava a bola e, antes de conseguir dominá-la, já sabendo que andava por ali o melhor zagueiro do mundo, ouvia o grito: “Oi!”. Bastava para que a bola lhe fugisse, sobrando para pés afeitos a trabalhá-la.


Uma tarde apareceu para treinar um menino de pernas tortas. Já no vestiário o técnico Gentil Cardoso, rindo-se, chamara a atenção de todos para o candidato: aquele sujeito poderia ser tudo na vida, menos jogador de futebol. Começado o treino, lá pelas tantas uma bola sobrou para Garrincha. Nilton proferiu o grito de costume, mas o menino torto matou a bola com facilidade e ficou esperando. Ferido pela ousadia, Nilton partiu para cima do garoto com decisão (Já joguei contra ele: é uma extração rápida e sem dor). Talvez naquele momento estivesse em jogo não só a bola, mas o destino de Garrincha. Se Nilton o desarmasse e lhe aplicasse como corretivo à petulância duas ou três fintas, Gentil Cardoso não esperaria muito para enviar o novato sem jeito para o chuveiro. Apesar desse perigo, e a despeito de estar enfrentando um jogador da mais alta categoria, Mané escolheu o caminho da porta estreita: driblar Nilton Santos. Talvez pensasse: ou dou uma finta neste cobra ou volto para o trabalho mal pago da fábrica.

Só três vezes em sua carreira Nilton Santos levou drible entre as pernas: a primeira foi ali naquele instante. A turma que não perde treino ficou boquiaberta; o lance não consagrou o estreante, mas abriu um crédito de curiosidade para Garrincha. Seu destino estava salvo.

Quem levou Garrincha para o Botafogo foi Arati, depois de apitar uma partida em Pau Grande, 3º distrito do município de Magé. Tendo começado a chutar bola aos dez anos de idade, Garrincha não teve outro clube além do Pau Grande Futebol Clube e o Botafogo. Apesar de sua modéstia inacreditável, duas vezes seu Mané, aconselhado pelos outros, desconfiou que tinha futebol suficiente para tornar-se profissional. Uma tarde bateu em São Januário. Era então o Vasco um quadro de craques experientes, cobertos de glória, uma espécie de Academia de Futebol, sem perspectivas para estreantes. Garrincha uniformizou-se, mas não chegou a ser apresentado à bola vascaína. Meses depois foi parar no Fluminense, conseguindo treinar meio tempo, já na hora da penumbra e do cansaço de Gradim, o técnico, que não deu pelo acontecimento que passou à sua frente.


No Botafogo Garrincha estreou na mesma semana em que apareceu, jogando no time de baixo. No domingo seguinte, a dramática torcida botafoguense via entrar em campo aquele extrema de pernas desajeitadas. Há coisas que só acontecem ao Botafogo, resmungaram nas sociais; um jogador de pernas tortas, essa não. O adversário era o Bonsucesso. Já antes do término do primeiro tempo, Manuel Francisco dos Santos tomava conta da posição, correndo como um potro, batendo na bola com segurança, fintando com estilo próprio, cobrando escanteios dos dois lados, sendo que do lado esquerdo a bola descrevia uma curva não prevista pela geometria euclidiana e pelos arqueiros.

Em suma, apareceu feito, praticando um futebol pessoal e desconcertante, ao qual só falta o dom da cabeçada.

Não quero ser modesto em matéria de futebol: descobri de imediato esse mundo novo – Garrincha – com a intuição alvoraçada de todas as alegrias que dele me viriam. Senti Pelé e Garrincha à primeira vista. Esse orgulho ninguém me tira.

Transformado em ídolo duma parte da torcida alvinegra (os eternos bobocas continuavam a negá-lo), Mané seria um dos artilheiros do campeonato de 1953 e, sem dúvida, a revelação do ano. Sob pseudônimo, escrevi para a Revista da Semana uma reportagem, lembrando que o ponta botafoguense deveria pelo menos ser convocado para os treinos da seleção brasileira que iria disputar na Suíça a Copa do Mundo de 1954. Zezé Moreira não tomou conhecimento nem de minha reportagem, nem de Garrincha. Fomos eliminados no jogo contra a Hungria, após uma campanha de classificação sem brilho e sem brio.


Há pouco tempo, um amigo meu, tricolor cordial, perguntou a Garrincha se era verdade que o clube dele era o Fluminense. Não, sempre tivera mais inclinação pelo Botafogo mesmo. “Mas um repórter”, replicou o outro, “escreveu que você lhe confessou ser torcedor do Fluminense”. Garrincha se riu e contou que o jornalista tinha lhe pedido o favor de poder divulgar essa mentira, pois dependia dum furo esportivo para continuar no emprego. E seu Mané acrescentou: “Eu nunca fui muito de futebol não!”. É claro que começamos a rir.

Garrincha ilustrou seu ponto de vista: “Ué, vocês querem saber duma coisa? No último jogo daquela Copa que teve aqui no Rio, eu nem dei bola. Não ouvi nem rádio. Fui caçar passarinho. Rapaz, quando cheguei de tardinha lá em Pau Grande, levei um susto danado: tava todo mundo chorando. Pensei logo que fosse desastre de trem. Quando me contaram que o Brasil tinha perdido é que fiquei calmo e falei pro pessoal que era bobagem chorar por causa de futebol”.

Enquanto 200 mil brasileiros penavam no Maracanã, enquanto todo o Brasil carpia diante do rádio, Garrincha caçava passarinho nas capoeiras da Raiz da Serra. Friaça fazia o primeiro gol, uma rolinha caía morta. Schiafino empatava para os uruguaios, um tiziu levava chumbo. Gigghia enfiava a bola da amargura nacional entre Barbosa e a trave, Garrincha derrubava com um tiro uma outra garrincha.

Sim, foi um desastre de trem, o trem chamado Brasil descarrilou ao entrar na estação terminal; todos os brasileiros saíram gravemente feridos, menos Manuel Francisco dos Santos, o caçador que oito anos mais tarde arrasaria o plano quinquenal soviético para o futebol, destruindo depois o cartesianismo francês, comendo a Suécia impecável por uma perna. O caçador que doze anos mais tarde traria de novo para o Brasil a Copa Jules Rimet.


Um dia é da caça, outro do caçador. Nas horas vagas, seu Mané caça; nas horas de trabalho, é caçado. Foi caçando que ganhou o apelido de Garrincha com um N que o Aurélio não registra, mas que é também uma forma popular de designar a garricha ou garriça, ave feinha que os livros dizem pertencer à família dos troglotídeos, isto é, das cavernas.

Desde que a gente se coloca no próprio espaço, não reflete mais. Se tivesse que escolher os pensamentos que mais me instruem sobre o mundo e a vida, esse aforismo dos cadernos do pintor Georges Braque entraria na minha lista. A frase me vem muito à lembrança quando espio o fenômeno Garrincha. Não há paraíso terrestre melhor do que executar uma ação dentro do espaço que lhe é próprio. Não refletir mais, livrar-se da inteligência. Criar uma ação por uma fatalidade fácil. Dentro do nosso espaço.

A alegria do futebol de Garrincha está nisso: dentro do campo, ele se integra no espaço que lhe é próprio, não reflete mais, não perde tempo com a vagareza do raciocínio, não sofre a tentação dos desvios existentes no caminho da inteligência. Como um poeta tocado por um anjo, como um compositor seguindo a melodia que lhe cai do céu, como um bailarino atrelado ao ritmo, Garrincha joga futebol por pura inspiração, por magia, sem sofrimento, sem reservas, sem planos. O futebol requintadamente intelectual de Didi é sofrido e sujeito a todas as falhas do intelecto. Garrincha, pelo contrário, se suas condições físicas estão perfeitas, se nada lhe pesa na alma, é como se fosse um boneco a que se desse corda: não reflete mais. Garrincha é como Rimbaud: gênio em estado nascente. Se um técnico desprovido de sensibilidade decide funcionar como cérebro de Garrincha, tentando ser a consciência que lhe falta, isto é, transmitindo-lhe instruções concretas, lógicas, coercitivas, pronto – é o fim. O grande mago perde a espontaneidade, o espaço, o instinto, a força. Em vez do milagre, que ele sabe fazer, ensinam-lhe a fazer um truque sensato. Não pode haver maior tolice.


João Saldanha sabia que não há instrução possível para Garrincha. Se a virtude do Mané nada tem a ver com a lógica, não será através da lógica que lhe corrigiremos os possíveis defeitos. E defeitos e virtudes não são partes que se possam isolar em Garrincha, que escreve certo por linhas tortas. Suas pernas são os símbolos desconexos dessa ilogicidade criadora.

O jornalista Armando Nogueira tem uma teoria muito boa sobre o drible de seu Mané, apesar de Mario Filho não concordar com ele e comigo. “O drible”, diz Armandinho, “é, em essência, fingir que se vai fazer uma coisa e fazer outra; fingir, por exemplo que se vai sair pela esquerda, e sair pela direita. Pois o Garrincha”, conclui o comentarista, “é a negação do drible. Ele pega a bola e para; o marcador sabe que ele vai sair pela direita; seu Mané mostra com o corpo que vai sair pela direita; o público todo sabe que ele vai sair para a direita; seu Mané mostra mais uma vez que vai sair pela direita; a essa altura, a convicção do marcador é granítica: ele vai sair pela direita; Garrincha parte e sai pela direita. Um murmúrio de espanto percorre o estádio: o esperado aconteceu, o antônimo do drible aconteceu”.

Descobri há tempos uma graça espantosa nessa finta de Garrincha: às vezes o adversário retarda o mais possível a entrada em cima dele, na improvável esperança duma oportunidade melhor. Garrincha avança um pouco, o adversário recua. Que faz então? Tenta o marcador, oferecendo-lhe um pouco da bola, adiantando esta a um ponto suficiente para encher de cobiça o pobre João. João parte para a bola de acordo com o princípio de Nenê Prancha: como quem parte para um prato de comida. Seu Mané então sai pela direita.

Alguns artigos do Literatura na Arquibancada sobre Mané Garrincha:


“Celebrando Garrincha”

“Saudades de um Mané”


“Malandro é malandro e Mané é Mané”

“Mané e o sonho”

Megafone do esporte: Garrincha e o "olé"

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Arte: Gonza


Nos 30 anos sem o gênio de Mané Garrincha, Deixa Falar : o megafone do esporte *sai em edição extraordinária para lembrar  Mané Garrincha e uma de suas criações: o Olé, através de um texto clássico de João Saldanha à época (1958), técnico do lendário time do Botafogo. O texto, inédito, foi extraído do livro Os Subterrâneos do Futebol de João Saldanha, lançado em 1963 pela editora Tempo Brasileiro.

"OLÉ" NASCEU NO MÉXICO
Por João Saldanha


O Estádio Universitário ficou à cunha. Cem mil pessoas comprimidas para assistir ao jogo. É muito alegre um jogo no México. É o país em que a torcida mais se parece com a do Rio de Janeiro. Barulhenta, participa de todos os lances da partida. Vários grupos de "mariaches" comparecem. Estes grupos, que formam o que há de mais típico da música mexicana, são constituídos de um ou dois "pistões" e clarins, dois ou três violões, harpa (parecida com a das guaranias), violinos e marimbas. As marimbas são completamente de madeira, mas não vão ao campo de futebol, sendo substituídas por instrumentos pequenos. O ponto alto dos "mariaches" é a turma do pistão, do clarim e o coro, naturalmente. No campo de futebol, os grupos amadores de "mariaches" que comparecem ficam mais ativos em dois momentos distintos: ou quando o jogo está muito bom e eles se entusiasmam, ou, inversamente, quando o jogo está chato e eles "atacam" músicas em tom gozador. No jogo em que vencemos ao Toluca, que estava no segundo caso, os "mariaches" salvaram o espetáculo.

O time do River era, realmente, uma máquina. Futebol bonito e um entendimento que só um time que joga junto há três anos pode ter. Modestamente, jogamos trancados. A prudência mandava que isto fosse feito. De fato, se "abríssemos", tomaríamos um baile.

Foi um jogo de rara beleza. E não foi por acaso. De um lado estavam Rossi, Labruña, Vairo, Menéndez, Zarate, Carrizo. De outro, estavam Didi, Nilton Santos, Garrincha etc. Jogo duro e jogo limpo. Não se tratava de camaradagem adquirida em quase um mês no mesmo hotel, mas sim da presença de grandes craques no gramado. A torcida exultava e os "mariaches" atacavam entusiasmados.


Estava muito difícil fazer gol. Poucas vezes vi um jogo disputado com tanta seriedade e respeito mútuos. Mas houve um espetáculo à parte. Mané Garrincha foi o comandante. Dirigiu os cem mil espectadores. Fazendo reagirem à medida de suas jogadas. Foi ali, naquele dia, que surgiu a gíria do "Olé", tão comumente utilizada posteriormente em nossos campos. Não porque o Botafogo tivesse dado "Olé" no River. Não. Foi um "Olé" pessoal. De Garrincha em Vairo.

Nunca assisti a coisa igual. Só a torcida mexicana com seu traquejo de touradas poderia, de forma tão sincronizada e perfeita, dar um "Olé" daquele tamanho. Toda vez que Mané parava na frente de Vairo, os espectadores mantinham-se no mais profundo silêncio. Quando Mané dava aquele seu famoso drible e deixava Vairo no chão, um coro de cem mil pessoas exclamava: "Ôôôôô"! O som do "olé" mexicano é diferente do nosso. O deles é o típico das touradas. Começa com um ô prolongado, em tom bem grave, parecendo um vento forte, em crescendo, e termina com a sílaba "lé" dita de forma rápida. Aqui é ao contrário: acentua-se mais o final "lé": "Olééé!" – sem separar, com nitidez, as sílabas em tom aberto.

Verdadeira festa. Num dos momentos em que Vairo estava parado em frente a Garrincha, um dos clarins dos "mariaches" atacou aquele trecho da Carmem que é tocado na abertura das touradas. Quase veio abaixo o Estádio Universitário.

Numa jogada de Garrincha, Quarentinha completou com o gol vazio e fez nosso gol. O River reagiu e também fez o dele. Didi ainda fez outro, de fora da área, numa jogada que viera de um córner, mas o juiz anulou porque Paulo Valentim estava junto à baliza. Embora a bola tivesse entrado do outro lado, o árbitro considerou a posição de Paulinho ilegal. De fato, Paulinho estava off-side. Havia um bolo de jogadores na área, mas o árbitro estava bem ali. E Paulinho poderia estar distraindo a atenção de Carrizo.


O jogo terminou empatado. Vairo não foi até o fim. Minella tirou-o do campo, bem perto de nós no banco vizinho. Vairo saiu rindo e exclamando: "No hay nada que hacer. Imposible" – e dirigindo-se ao suplente que entrava, gozou:
Buena suerte muchacho. Pero antes, te aconsejo que escribas algo a tu mamá.
O jogo terminou empatado e uma multidão invadiu o campo. O "Jarrito de Oro", que só seria entregue ao "melhor do campo" no dia seguinte, depois de uma votação no café Tupinambá, foi entregue ali mesmo a Garrincha. Os torcedores agarraram-no e deram uma volta olímpica carregando Mané nos ombros. Sob ensurdecedora ovação da torcida. No dia seguinte, os jornais acharam que tínhamos vencido o jogo, considerando o tal gol como válido. Mas só dedicaram a isto poucas linhas. O resto das reportagens e crônicas foi sobre Garrincha.

As agências telegráficas enviaram longas mensagens sobre o acontecimento e deram grande destaque ao "Olé". As notícias repercutiram bastante no Rio e a torcida carioca consagrou o "Olé". Foi assim que surgiu este tipo de gozação popular, tão discutido, mas que representa um sentimento da multidão.


Já tentaram acabar com o "Olé". Os árbitros de futebol, com sua inequívoca vocação para levar vaias, discutiram o assunto em congresso e resolveram adotar sanções. Mas como aplicá-las? Expulsando a torcida do estádio? Verificando o ridículo a que estavam expostos, deixam cada dia mais o assunto de lado. É melhor assim. É mais fácil derrubar um governo do que acabar com o "Olé".

Não poderia ter havido maior justiça a um jogador que a que foi feita pelos mexicanos a Mané Garrincha. Garrincha é o próprio "Olé".

Dentro e fora de campo, jamais vi alguém tão desconcertante, tão driblador. É impossível adivinhar-se o lado por onde Mané vai "sair" da enrascada. Foi a coisa mais justa do mundo que Garrincha tivesse sido o inspirador do "Olé".



No link algumas jogadas de Garrincha. Reparem na jogada de Garrincha contra a Espanha na Copa de 1962, driblando vários adversários, colocando a bola na cabeça de Amarildo para fazer 2x1 Brasil. Uma vitória que classificou o Brasil.


 

*Deixa Falar: o megafone do esporte, criação e edição de Raul Milliet Filho.







Acompanhe as outras edições do Deixa Falar: o megafone do esporte nos links abaixo:





Veja ainda outros artigos do Literatura na Arquibancada sobre Mané Garrincha:

“Trinta anos sem Mané Garrincha”

“Celebrando Garrincha”

“Saudades de um Mané”

“Malandro é malandro e Mané é Mané”

“Mané e o sonho”

O centenário do Diamante Negro

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24 de janeiro é uma data triste para o futebol brasileiro, mas 2013 é um ano de comemorações para um homem, ou melhor, uma verdadeira lenda do futebol mundial. Há 9 anos, Leônidas da Silva, o Diamante Negro, o primeiro “Pelé” de nosso país, o homem que revelou ao mundo a magia do nosso futebol, a partir da Copa do Mundo de 1938, nos deixava quando tinha 90 anos.


A comemoração tem razão: 2013 é o ano do centenário de Leônidas da Silva. Literatura na Arquibancada resgata abaixo alguns artigos, publicados por aqui mesmo e ainda o documentário que imortaliza o Diamante Negro, exibido pela TV Cultura de São Paulo.

O apelido, Diamante Negro, surgiu da primeira grande sacada de marketing (praticamente inexistente na época) de uma empresa nacional.


Logo após o lançamento da biografia do craque Leônidas (Diamante Eterno, Gryphus, 1999), o respeitado jornalista da cidade de Campinas, interior de São Paulo, Antonio Carlos Fernandes, escreveu para o extinto jornal Gazeta Mercantil (Caderno de Cultura) um artigo sensacional mostrando o surgimento desta marca consumida até hoje. 

O Diamante Negro é a segunda marca de tabletes, com 8,2% de participação de mercado (dados de 2010), e também a marca de chocolate ao leite mais consumida do mercado.
Descobriu-se, então, muito tempo atrás, como os craques do nosso futebol poderiam virar “fenômenos” de vendas...

Diamante Negro, o craque que não para de vender chocolate
Por Antonio Carlos Fernandes



Leônidas da Silva, craque que se notabilizou no futebol brasileiro nos anos 30 e 40 pela capacidade de fazer gols e por ter inventado uma das jogadas mais espetaculares do esporte, a bicicleta, não sai de cena. Diamante Negro, como ficou conhecido nos gramados, segue viagem brilhante na indústria de alimentos como marca de um dos chocolates mais vendidos no Brasil. Diamante Negro, o chocolate lançado em 1938 e que ilustra gôndolas de supermercados e padarias, vende hoje (1998) cerca de 20 mil toneladas por ano. Diamante Negro, o craque, que jogou duas Copas do Mundo e marcou a profissionalização do futebol no país.


Trabalhar a imagem de Leônidas da Silva, quando o profissionalismo no esporte bretão ainda engatinhava por aqui, seria um doce na mão de criança nestes tempos de Ronaldos. Literalmente. 

Com a fama conquistada nos gramados, engrandecida pela invenção da bicicleta, Leônidas negociou seu apelido com a Lacta por quase nada se compararmos com as cifras que o mercado do esporte move atualmente.


As toneladas de chocolate que o mercado consome hoje representam 1 bilhão de tabletes por ano nas embalagens de 20 gramas, a primeira versão do Diamante Negro que desapareceu em meados dos anos 80 - atualmente a embalagem mais vendida é de 30 gramas. Leônidas não tinha ideia das dimensões da empreitada – leia-se direitos pelo uso da marca. Ganhou o “bicho” pelo gol e viu desaparecer sua participação nessa história. 

Para o futebol, ao se falar de Leônidas, recupera-se a história da profissionalização do esporte no Brasil, de curso acidentado nos anos 30 e 40. O jogador é um divisor de tempos nos negócios do esporte, cercado na cronologia pelos craques Friedenreich e Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. 

Leônidas (esquerda), Friedenreich e Pelé.

Friedenreich viveu a fase branca do futebol brasileiro, quando o esporte era dominado pela elite, sob influência dos ingleses que chegaram ao País com as primeiras bolas no início do século. Nesse período, em que negros e mulatos não tinham vez nos campos, Fried, filho de alemão com negra, foi o jogador mais notável. Pelé, tricampeão do mundo, que mostrou a cara e o talento em 1958, foi o primeiro exemplo de atuação gloriosa de um futebolista também fora das quatro linhas. Não que tenha abocanhado os milhões de dólares que os craques de hoje, como Ronaldo, da Inter de Milão, e Rivaldo, do Barcelona, abocanham. Mas fez fortuna. Principalmente depois de contratado pelo Cosmos, dos Estados Unidos, nos anos 70, já no final de carreira, para tentar vencer a resistência norte-americana ao futebol.


Se o chocolate da fábrica Lacta, do bairro do Brooklin, em São Paulo (atualmente a Lacta tem sede em Curitiba, Paraná), tivesse caído nas mãos dos craques atuais - melhor, nas mãos dos empresários dos jogadores, personagens quase que inexistentes na primeira metade do século passado -, a fábrica teria que rebolar na produção e estratégias de marketing para justificar o investimento pesado no garoto propaganda.


Mas nos anos 30, quando o principal meio de comunicação era o rádio movido a carvão, a história era outra. Não só do futebol como da indústria brasileira. Leônidas da Silva, por exemplo, que despontou no Rio de Janeiro no time do Bonsucesso, em 1931, aos 17 anos - os times maiores, como Flamengo, Fluminense e Botafogo só admitiam brancos nas equipes -, durante algum tempo teve o hábito de percorrer a arquibancada antes dos jogos para leiloar seus gols entre os torcedores, todos muito bem arrumados e acompanhados por moçoilas protegidas por sombrinhas. A vaquinha improvisada era a única forma de engordar o orçamento e dar consistência à vida boêmia carioca. Imaginem Romário ou Edmundo em atitude semelhante no Maracanã.

Antiga fábrica da Lacta (à esq), no bairro do Brooklin, em SP.

E a indústria brasileira, guardadas as devidas proporções, não era muito diferente naquele início de século do bairro do Brooklin, em São Paulo, em São Paulo.

Em 1912, quando surgiu em São Paulo a fábrica de chocolates Lacta, a primeira especializada em chocolates finos a se instalar no País, o Brasil apostava todas suas fichas na borracha dos seringais nativos da Amazônia. O País exportou 42 mil toneladas de borracha, o equivalente a 40% da exportação brasileira, alegria que logo depois virou lamúria no momento em que os ingleses encheram os bolsos com os seringais plantados no Oriente.

Naquele 1912, em que o sucesso carnavalesco ficou por conta do frevo “Vassourinha”, a Lacta era fundada por um grupo liderado pelo cônsul suíço Achilles Izella, que criou a Societè Anonyme de Chocolats Suisses. A empresa se propunha a dar aos brasileiros produtos com a mesma qualidade dos importados. Em 1916, a Zanotta, Lorenzi & Cia, a mais conhecida importadora de chocolates franceses do País, assumiu o controle da Lacta para iniciar o processo de expansão.


Enquanto a Lacta crescia, o futebol se transformava em entretenimento de massa e Leônidas da Silva, que ganhara o apelido de Diamante Negro em gramados franceses na Copa de 1938, passou a conquistar fama sem precedentes no País. Leônidas cairia de vez nas graças da torcida depois da Copa, na França, quando orquestrou a equipe brasileira na conquista do terceiro lugar, fato surpreendente para um país que até pouco tempo assistia o futebol pelo buraco da fechadura.

Naquela Copa do Mundo, Leônidas foi o artilheiro da competição com sete gols e seu empenho chegou ao insólito quando fez um gol descalço no jogo contra a Polônia, o último na vitória por 6 a 5, depois de perder a chuteira esquerda no campo encharcado. No meio de uma confusão na área cheia de lama, o juiz não percebeu que o jogador estava descalço e validou o gol. Foi a glória. O Diamante Negro chegou ao Brasil com a bola toda.


Pouco antes da Copa, em 1937, a importadora Zanotta, Lorenzi & Cia vendera a Lacta para o Grupo Chateaubriand, que reformulou o enfoque mercadológico da empresa e deu novo rumo para sua linha de produtos. Nessa virada, nasceram aqueles que seriam as estrelas entre as guloseimas da época: um chocolate em forma de bola, embalado em papel celofane vermelho, batizado de Sonho de Valsa, e outro tablete recheado com castanha de caju, chamado apenas de Chocolate Lacta.

Seduzidos pela popularidade do futebol no Brasil, cujos clubes mais populares estufavam os ainda acanhados estádios, os executivos da Lacta deram tratos à bola e buscaram em Leônidas da Silva a inspiração para dar nome ao chocolate com castanha de caju: Diamante Negro.


Apresentado em embalagem de cor negra com o símbolo estilizado de um diamante, o chocolate tinha uma receita que se mostrou imbatível com o passar do tempo, como descreve a assessoria de imprensa da Lacta: açúcar, glucose e mel cozidos e misturados com castanha de caju, massa que é adicionada ao chocolate ao leite e triturada em cilindro. Pronto. Quando o Grupo Chateaubriand introduziu nessa história a figura de Leônidas da Silva, estava completa a fórmula do sucesso.
 
O jornalista André Ribeiro, autor da biografia de Leônidas da Silva, “O Diamante Eterno”, da Editora Gryphus (e Diamante Negro, da Cia dos Livros), comenta que o jogador se tornaria então o primeiro a trabalhar como “garoto propaganda” remunerado, mesmo que de forma quase que simbólica. Antes dele, segundo Ribeiro, só Friedenreich fizera propaganda dos refrigerantes Antarctica, o que não merece comparação com Leônidas, uma vez que aquele que foi o primeiro ídolo do futebol brasileiro era ao mesmo tempo funcionário da empresa.

Leônidas e Friedenreich.

O jogador chegou a participar de propagandas do chocolate em rádios e jornais, a convite do fabricante. Em troca, recebera “um punhado” de dinheiro dos donos da Lacta, segundo o jornalista Ary Silva, amigo de Leônidas, que o acompanhara no encontro na fábrica paulistana. Silva teria visto ainda o jogador assinar contrato de participação nas vendas do chocolate Diamante Negro, como relatado em “O Diamante Eterno”.

O “punhado” de dinheiro entregue ao jogador, de acordo com Albertina Santos, atual mulher de Leônidas, foi o equivalente a três contos de réis, pouco mais de R$ 3 mil, o equivalente ao triplo do seu salário. E do contrato de participação nas vendas do chocolate ninguém tem notícia. Albertina prefere não polemizar sobre a questão dos direitos do uso do nome, diz que Leônidas sempre preferiu pôr panos quentes na história, que recebera o que pedira, e ponto final.

Pelo menos o jogador recebeu algum dinheiro pela divulgação do chocolate. No período pós-copa de 38, como Ribeiro conta em seu livro, o empresário Manoel de Brito pediu a Leônidas que assinasse uma declaração colocando nas nuvens a goiabada marca Peixe. O anúncio, em um quarto de página, foi publicado em todos os jornais. O pagamento foi feito em espécie: uma caixa de goiabada.


Como Leônidas seria capaz de vender qualquer coisa endossada pelo seu apelido, como garantia Mário Filho em “O Negro no Futebol Brasileiro”, os convites para propaganda pareciam não ter fim. Diamante Negro era a marca da vez. Mesmo o nome Leônidas, não tão popular quanto o apelido, empurrava qualquer negócio. O craque, acompanhado do secretário José Maria Scassa, o primeiro empresário de jogador de futebol que se tem notícia, foi assim parar na cidade de Jundiaí para assinar contrato para o lançamento de um produto que deixariam os atuais profissionais de marketing esportivo arrepiados: cigarro. Por 15 contos, o jogador fechou acordo com a Companhia Sudan - maior fabricante de cigarros do Brasil na época -, que lançou no mercado os cigarros Leônidas. Nada mais politicamente incorreto. 
Mas naquela época tabaco era símbolo de status até para atletas.

Leônidas e o presidente Getúlio Vargas.

Em 1939, quando jogava pelo Flamengo, a Companhia de Cigarros Magnólia fez um concurso para saber quem era o jogador mais popular do Rio de Janeiro. Leônidas ficou dias no Café Rio Branco recebendo torcedores que lhe entregavam maços de cigarro. Cada maço valia um voto. Foram mais de 300 mil maços de cigarro. Era o auge da fama e o jogador passava a competir em popularidade com Getúlio Vargas, “o pai dos pobres”, e Orlando Silva, “o cantor das multidões”.

Depois de jogar pelo Peñarol, do Uruguai, Vasco, Botafogo, Flamengo e seleção brasileira nos anos 30, após a Copa de 38, na França, Leônidas renovou contrato com o Flamengo a peso de ouro: 50 contos (R$ 53 mil) por um ano. O jornalista André Ribeiro avalia na biografia de Leônidas que o jogador mais famoso do Brasil poderia ganhar mais dinheiro na renovação se tivesse mais paciência. Mas estava rico o suficiente em 1939 para comprar por 3 contos um carro zero. Ele e Heleno de Freitas eram então os dois únicos jogadores do futebol brasileiro a ter este que se tornaria o eterno objeto de desejo dos futebolistas.

Leônidas carregado pela multidão na chegada a SP.

A Lacta seguia seu caminho de sucesso e tinha como carro-chefe o chocolate Diamante Negro, quando, em 1941, passou a ser controlada pela família Adhemar de Barros. Naquele ano, o Brasil vivia o quarto aniversário do Estado Novo e a Rádio Nacional lançava a primeira radionovela do País: “O Direito de Nascer”. No ano seguinte, Leônidas deixaria definitivamente o Rio de Janeiro ao ser comprado pelo São Paulo por 200 contos de réis, uma fortuna para um país em que um quilo de carne custava 1.500 réis, como Ribeiro compara em seu livro.

Leônidas jogou no São Paulo até 1949, período em que conquistou praticamente todos os títulos possíveis. Depois tornou-se comentarista de rádio e tevê. Nos anos 50, com o mercado de chocolates vivendo expansão sem precedentes no Brasil, a Lacta expandiu seu parque industrial em São Paulo e consolidou a liderança no setor.


Leônidas continuou a trabalhar como comentarista esportivo até a Copa de 74, quando se aposentou, forçado pelo mal de Alzheimer, que passou a se manifestar com intensidade. Em 1996, a Philip Morris, que já detinha 40% do capital da Lacta através da Jacobs Suchard, assumiu o controle da empresa (hoje, 2013, é a Kraft Foods quem controla a empresa).

Assim como Pelé deixou sua marca com o soco no ar para comemorar os gols, Leônidas fez da bicicleta o símbolo da habilidade do jogador brasileiro.






Sobre Antonio Carlos Fernandes:

Cacalo Fernandes mora em Campinas, interior de São Paulo e já atuou na área de esportes nos jornais Lance, O Estado de S. Paulo, Correio Popular, Diário do Povo e revistas Cruzadas Esportivas e Interesportes.  Na área esportiva, Cacalo Fernandes é autor do livro de crônicas A Bola é uma História, que reúne histórias publicadas nos jornais Correio Popular e O Estado de S.Paulo.







Abaixo, alguns artigos publicados pelo Literatura na Arquibancada sobre o Diamante Negro:

Arte: Zuca Sardan

 - 100 anos do Diamante Negro no “Deixa Falar: o megafone do esporte”, artigo assinado pelo mestre Sebastião Witter.

- O resgate do histórico jogo entre Brasil e Polônia, na Copa do Mundo de 1938 e que teve Leônidas da Silva como principal personagem.

- A estreia de Leônidas da Silva no São Paulo Futebol Clube. Um dia histórico para o futebol brasileiro.





Albertina e Leônidas


 - A linda história de amor de Leônidas da Silva e Albertina, esposa e fiel companheira do Diamante Negro.

- E, finalmente, o documentário exibido pela TV Cultura, "Diamante Negro - O homem que venceu o tempo", que você pode acessar nos links abaixo. Apenas como observação, infelizmente, logo no início do programa (os 30” iniciais), o belíssimo texto interpretado pelo ator Milton Gonçalves, não é reproduzido:


Megafone do Esporte: O futebol de botão

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Arte: Zuca Sardan


“Deixa Falar: o megafone do esporte”, espaço de debates que sai quinzenalmente, sábado sim, sábado não, aqui, no Literatura na Arquibancada, na Carta Maior (http://www.cartamaior.com.br) e no blog do Juca (http://blogdojuca.uol.com.br/), debatendo o esporte em geral e o futebol em particular, dialogando com a História, Política, Música, Economia, Literatura, Cinema, Humor, apresenta nesta sua quinta edição, artigo de Marcos Alvito.

O tempo em que Tostão valia mais do que Pelé
Marcos Alvito

Arte: Zuca Sardan

Para mim não havia dúvida, era fato incontestável: Tostão era melhor do que Pelé. Até que Pelé tinha seu valor: fazia jogadas insinuantes, penetrava com facilidade nas defesas e perto da área ou dentro dela era quase infalível. Mas Tostão era maior do que ele, pelo menos no meu time de futebol de botão. Pelé era uma "vidrilha", isto é, uma tampa transparente de relógio de pulso transformada em goleador. Por ser transparente, ficava bonito ver a cabecinha de Pelé recortada do jornal e devidamente colada no "meu" jogador. Tostão, por sua vez, era um botão de galalite brilhante, amarelo. À época eu nem pensava como se fazia o galalite, mas pesquisando descobri que o precioso material é um derivado, vejam só, do leite. São necessários de 15 a 85 galões de leite para fazer um miserável quilo de galalite. É claro que isso me faz lembrar a antológica frase de Gentil Cardoso tentando convencer seus jogadores a praticarem o jogo rasteiro:

“A bola é de couro, o couro vem da vaca, a vaca gosta de grama, então joga rasteiro, meu filho”

Com o devido respeito, o galalite vem do leite, o leite vem da vaca... e não há jogo mais "rasteiro" do que o futebol de botão: a bola só alça vôo, normalmente, nos chutes, de resto os passes são colados à "grama".


O que eu já sabia, entretanto, é que os meus sonhos eram feitos daquele material. Aos nove anos eu admitia ser um perna-de-pau inapelável. Para compensar tornei-me um exímio jogador de futebol de botão. Com aquele time eu podia entrar dentro de campo, passar, driblar, chutar e, sobretudo, marcar gols, muitos gols. Por isso, para mim, Tostão era maior do que Pelé. Tostão era largo e alto e a sua especialidade, que o tornava temível entre os meus adversários, era chutar muito bem logo após a linha do meio de campo. Era desesperador e humilhante para os outros meninos sofrerem gols desse jeito. Imitando a vida real mais ainda, um amigo até me fez uma proposta por Tostão. O valor que oferecia era dez vezes mais do que a quantia que eu desembolsara na papelaria. De nada adiantou eu tentar lhe dizer (mesmo que eu também não acreditasse nisso), que Tostão era apenas um botão e que ele poderia comprar outro igual. Claro que sabíamos que os botões eram fabricados industrialmente, mas nenhum botão era igual ao outro. Disse ao meu amigo que não levaria vantagem sobre ele vendendo o Tostão por tanto dinheiro. Mas a verdade é que naquela época eu não venderia o "meu Tostão" por dinheiro algum.


O prédio de classe média onde eu morava era palco de um drama cotidiano. Na nossa infância as ruas de Botafogo (bairro do Rio de Janeiro) já não permitiam a sua transformação em campo de futebol improvisado. Nosso edifício não tinha playground, mas era construído sobre pilotis e o térreo funcionava como garagem. É claro que nós queríamos utilizar a garagem como palco de épicas peladas. O prédio proibiu, nós fizemos manifestação e passeata (ecos do movimento estudantil do fim da década de 60) mas não adiantou. Entre a alegria das crianças e o bem-estar dos automóveis, os pais optaram por seus veículos.

O que nos restou foi o futebol de botão. Se não podíamos jogar com os pés, jogávamos com as mãos e a imaginação. Ele tinha a capacidade de nos transportar para muito além de Botafogo. Fazíamos copas do mundo, cada um representando uma ou mais seleções, campeonatos cariocas, brasileiros e até campeonato inglês nós fizemos. Lembro de um campeonato jogado em três mesas, a maior era o Maracanã, a de tamanho médio era São Januário e a menor representava o estádio de um time pequeno.


À época, nós nem queríamos saber de onde tinha vindo o futebol de botão. Nem podíamos imaginar que ele tivesse sido criado na década de 30 e que em 1977 ele viesse a ser reconhecido oficialmente pelo Conselho Nacional de Desportos (CND) como uma modalidade esportiva. Mas sabíamos que a geração anterior à nossa jogara com botões diferentes, improvisados, muitos feitos de casca de côco. Na verdade, em cada lugar se jogava de um jeito. No nosso pequeno mundo da Rua Mariana 113, a bola era quadrada. Isso mesmo: jogávamos com um dadinho que comprávamos na papelaria. Em outros lugares usavam-se discos de plástico ou bolinhas de feltro. Tínhamos a liberdade de criar nossas próprias regras: tempo de jogo, fórmulas de campeonato (pontos corridos, eliminatórias etc), métodos de desempate (prorrogação, disputa de pênaltis). Nossos atletas eram mimados, cuidadosamente guardados em caixas de papelão, limpos com flanelas e tratados com carinho. Nossos "gramados" eram cobertos com uma fina camada de talco para os botões deslizarem melhor. Éramos técnicos, jogadores, cartolas e juízes, tudo ao mesmo tempo. 

Alvito na disputa do Carioca, individual, 2003.

Quando meu filho nasceu, fiz questão que ele tivesse oportunidade de jogar futebol de verdade.  Mas não deixei de lhe ensinar a jogar futebol de botão. Na verdade, por causa dele eu me tornei um "profissional" e nós dois jogamos juntos um campeonato brasileiro com a camisa do América, pois à época o Flamengo não tinha time de futebol de mesa.

Sim, o meu futebol de botão era agora pomposamente chamado de futebol de mesa por ter regras oficiais, campeonato, federação e o escambau. É completamente diferente. A mesa é enorme, tem quase dois metros de comprimento (c. 1,85 m) por um metro e vinte centímetros de largura. A regra mais difundida, pela qual eu jogava, permite no máximo doze toques na bola de feltro, redondíssima, sendo que cada botão só pode dar três toques na bola. Os botões são do tipo "argola", com um furo no meio e bem maiores do que eram meus craques de infância. E não são feitos mais de galalite e sim de acrílico.


Os atletas do futebol de mesa treinam duas vezes por semana pelo menos. Cada clube tem o seu CT (Centro de Treinamento) onde os mais aplicados passam horas e horas jogando uns contra os outros de olho nas competições. Sem falar nos fominhas que compram uma mesa e ficam em casa treinando chutes feito Zico fazia. Para participar dos campeonatos existem até competições seletivas, uma espécie de segunda divisão, onde eu tive que jogar até conseguir "subir" para a primeirona.

Quando eu comecei a competir, tive primeiramente que comprar um time. Mandei fazer um time amarelo, pra falar a verdade canarinho. Não colei as "cabecinhas" dos jogadores, mas mandei colocar nomes e números: Carlos Alberto, número 2, Gérson, número 8, Pelé, número 10 e, obviamente, Tostão, número 9. Confesso que nesta 2ª edição, Jairzinho começou a jogar mais do que todo mundo. Sim, porque embora seja você a mover a palheta, a crença mágica é que o botão é que está jogando. Há botões que jogam muito e outros que são irremediáveis pernas-de-pau. Ou estão apenas atravessando uma má fase...

II Copa do Mundo de Futebol de Mesa

Há campeonatos cariocas, brasileiro e, pasmem, em junho de 2012, ocorreu em Copacabana, no Rio de Janeiro, a II Copa do Mundo de Futebol de Mesa da modalidade doze toques. O Brasil sagrou-se bicampeão mundial, nada mais justo. Afinal, se o football association foi criado na Inglaterra, este futebol movido a sonho só podia ter sido inventado em terras tupiniquins.








Dois toques do Megafone:

Chico e Vinicius jogando botão.

1)      Até a década de 1990, o futebol de botão era uma grande paixão entre jovens e adultos. Hoje, com a cultura hegemônica dos jogos virtuais, o panorama é outro, tendo decrescido consideravelmente o número de seus adeptos. Chico Buarque de Hollanda é um dos que continua fiel ao botão, continuando na ativa, disputando jogos e campeonatos com amigos.

Seu time, o Politheama começou sua carreira como time de botão, passando com o tempo a ser também time de futebol de campo. Segundo o próprio Chico, são invictos até hoje, mesmo depois de mais de duas mil partidas disputadas.

Os dois Chicos jogando botão.

No primeiro link, imperdível, Chico Buarque conta a história de uma partida de botão que disputou contra Chico Anysio, com Vinícius de Moraes apitando o jogo.

No segundo link o hino do Politheama, cantado pelo autor. http://www.youtube.com/watch?v=pM6-ytj3CDs

Literatura na Arquibancada recomenda os links a seguir sobre a paixão de Chico Buarque pelo futebol de botão:


2)      No dia 29 de janeiro, 19hs, lançamento do livro Histórias do Samba(de João da Baiana a Zeca Pagodinho – Matrix Editora), de Marcos Alvito, na livraria Folha Seca, Rua do Ouvidor, 37, Centro-Rio de Janeiro.

3)      Marcos Alvito, titular absoluto do time do Megafone, é um craque com a palheta na mão. Defensor esmerado da cultura popular brasileira, estuda e pratica seus fundamentos com o talento e fidalguia  de um Afonsinho , de um Walter Alfaiate.





Sobre Marcos Alvito:
 
É carioca de Botafogo e Flamengo até morrer.  É um antropólogo que dá aula de História na UFF desde o longínquo ano de 1984.  Perna-de-pau consagrado, estuda um jogo que nunca conseguiu jogar direito: o futebol. Mas encara qualquer um no futebol de botão. Acaba de publicar A Rainha de Chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra (www.clubedeautores.com.br)






Deixa Falar: o megafone do esporte, criação e edição de Raul Milliet Filho.

Sobre os autores do “Deixa Falar: o megafone do esporte”

 
Ademir Gebara– graduado em História e Educação Física, mestre em História pela USP, PH D em História pela London School of Economics and Political Science, ex-diretor e coordenador de Pós da FEF Unicamp, professor visitante Universidade Federal da Grande Dourados.


 Antonio Edmilson Rodrigues – é América, livre docente em História, professor da UERJ e da PUC-RJ, pesquisador de História do Rio de Janeiro, escritor de temas vinculados à história urbana, coordenador do projeto Conversa de Botequim e autor de João do Rio, a cidade e o poeta.


Bernardo Buarque – professor da Escola Superior de Ciências Sociais (FGV) e pesquisador do CPDOC/FGV. `É editor da coleção Visão de Campo (7 Letras). Em 2012, publicou o livro ABC de José Lins do Rego (Editora José Olympio).

 
Flavio Carneiro – É botafoguense, além de escritor, roteirista e professor de literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).www.flaviocarneiro.com.br.


  José Paulo Pessoa – é botafoguense, ator, advogado, que achava o Didi mais impressionante que o Garrincha (que foi o maior que já vi!). Diretor, cantor e compositor do Bloco das Carmelitas, de Santa Teresa (RJ).


José Sebastião Witter – é torcedor do São Paulo, professor emérito da USP e professor normalista.


Luiz Carlos Ribeiroé professor do Departamento de História da UFPR e coordenador do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade.


Marcelo W. Proni – economista, doutor em Educação Física pela Unicamp, professor do Instituto de Economia da Unicamp, torcedor do Botafogo de Ribeirão Preto.


Raul Milliet Filho – é botafoguense, mestre em História Política pela UERJ, doutor em História Social pela USP. Como professor, pesquisador e autor prioriza a cultura popular. Gestor de políticas sociais, idealizou e coordenou o Recriança, projeto de democratização esportiva para crianças e jovens.


Ricardo Oliveira – é Vasco, jornalista, educador da prefeitura do Rio de Janeiro e pesquisador da História do futebol. Coordenador da pesquisa do livro Vida que Segue: João Saldanha e as Copas de 1966 e 1970.


Wanderley Marchi Jr – doutor em Educação Física e Sociologia do Esporte e professor da Universidade Federal do Paraná/BRA e da West Virginia University/USA.


Zuca Sardan (Carlos Felipe Saldanha) – É torcedor do Vasco, nasceu no Rio de Janeiro em 1933, mas vive em Hamburgo, na Alemanha. Estudou arquitetura, mas fez diplomacia. Estudou desenho, mas fez letras. Hoje dedica-se a desenhos, vinhetas, poesias e folhetins. Entre seus livros, estão: Ás de coletepoesias, desenhos e Osso do Coração.





Confira os outros artigos já publicados do Deixa Falar: o megafone do esporte

Luto

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O Brasil está triste. Força aos familiares das vítimas da tragédia de Santa Maria.


História em Quadrinhos e o Futebol

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No dia 30 de janeiro, comemora-se o Dia Nacional das Histórias em Quadrinhos. A data foi instituída há 22 anos pela Associação de Quadrinhistas e Cartunistas do Estado de São Paulo, com o objetivo de lembrar que em 1869, nesse mesmo dia, foi publicada a primeira história em quadrinhos brasileira.


E a HQ também tem muita história sobre o tema futebol. Literatura na Arquibancada apresenta abaixo uma série sobre esse universo fascinante. O maravilhoso artigo foi publicado no site Universo HQ (www.universohq.com), principal referência da internet brasileira quando o assunto é história em quadrinhos. O site também está fazendo aniversário neste mês de janeiro quando completa 13 anos de vida. Um site pra lá de confiável, vencedor de oito campeonatos consecutivos do Troféu HQ Mix (a premiação mais importante do mercado). 

Ultrapassou a marca de 4 mil resenhas online servindo de base para muitos trabalhos acadêmicos. Universo HQ tornou-se o maior banco de dados sobre quadrinhos da América Latina – e um dos maiores do mundo.

O autor da reportagem especial é o cearense radicado em Alagoas, Marcus Ramone, um dos editores da Universo HQ. 

O artigo foi escrito em 2004 e tem a respectiva autorização de seu uso. 

Abaixo, a primeira parte da reportagem. E no final do artigo a sequência da série especial sobre História em Quadrinhos e o Futebol.






Futebol e quadrinhos: 
uma caixinha de surpresas e fortes emoções

Por Marcus Ramone


Preste atenção em qualquer jogo entre Palmeiras e Cruzeiro. Duas torcidas organizadas estarão sempre lá, ostentando suas bandeiras. A Mancha Verde do lado dos paulistas, e a Mancha Azul pelos mineiros. Em comum, o fato de que seus símbolos são nada mais, nada menos que o Mancha Negra, famoso vilão dos quadrinhos Disney.

Mas no futebol as referências a HQs não se restringem ao Mancha, modificado pela cor do time de cada torcida. É fácil ver também o Hulk, o Duende Verde e até o Lobo da DC Comics estampados nas bandeiras das torcidas.

O que dizer, então, da folclórica e extinta "geral" do Maracanã, na qual se encontravam, comumente, torcedores fantasiados de Flash, Super-Homem, Batman e Robin em tudo quanto é Fla-Flu?

Curioso foi o que aconteceu com o Lanterna Verde, que em 2002 esteve na boca até de quem não curtia quadrinhos. Graças ao Palmeiras, que no Brasileirão daquele ano amargou sua pior campanha em certames nacionais (caiu para a segunda divisão), e por causa da cor de sua camisa e por ficar nas últimas colocações do certame... bem, a piada estava feita.

Mas na campanha que reconduziu o alviverde à divisão de elite, os torcedores adotaram um novo símbolo: o "verdão" Hulk. Havia até um ator que se "transformava" no personagem a cada partida.

Também em São Paulo, por muito tempo a torcida corintiana estendeu nos estádios uma faixa com o desenho Batimão, tendo o defensor de Gotham City com a camisa do clube, numa criativa junção do nome do herói com o apelido do clube.


A relação entre futebol e quadrinhos é mais velha do que se pensa. Já na década de 40, o argentino Lorenzo Mollas criou várias mascotes para os times cariocas. Nessa brincadeira, o Pato Donald passou a representar o Botafogo. Mas, antes disso, o marinheiro Popeye já posava como símbolo do Flamengo. Somente em 1969 o cartunista Henfil criou o urubu para o clube rubro-negro.

Em meados dos anos 80, pelas mãos de Ziraldo, popularizaram-se várias outras mascotes, com destaque para o Super-Homem do Bahia (por muito tempo chamado de "Tricolor de Aço") e o Saci Pererê do Internacional.

Na Paraíba, o cartunista Deodato Borges (pai de Mike Deodato, um dos melhores desenhistas brasileiros da Marvel), bolou para o Treze de Campina Grande uma majestosa raposa. E o Botafogo da capital João Pessoa tem como representante o Guarda Belo, da Hanna-Barbera, embora ultimamente a torcida prefira o cão pitbull. Já o Esporte de Patos, do interior estado, também usa a figura do Pato Donald.

Também da Disney, o índio Havita e o papagaio Zé Carioca já foram usados como símbolos, respectivamente, do Guarani de Campinas e do Palmeiras, embora não sejam mais bem aceitos pelos torcedores (os palmeirenses até adotaram o porco, há alguns anos, como a mascote "oficial").


Mas o interessante foi ver toda a turma de Patópolis entrando no clima e vestida com uniformes de seleções de vários países. Isso aconteceu em 2002, no álbum de figurinhas Copa do Mundo Disney. O livro ilustrado foi uma grata surpresa da Editora Abril, que há muito deixara de lançar cromos de personagens Disney, muito comuns nas décadas de 1970 e 1980.

Para relembrar uma Seleção Brasileira que deixou saudades, vale voltar aos meses que antecederam a Copa do Mundo da Espanha, em 1982, quando era exibida na TV uma propaganda da Gillette que marcou época. Era um desenho animado cujo personagem, Pacheco, um sujeito bonachão que representava toda nossa torcida, virou símbolo do País na competição. Ele também aparecia nos gibis, na forma de publicidade em quadrinhos.

Em 2003, no México, os jogadores do Rayados de Monterrey adotaram uma mascote do Hulk, de pouco mais de um metro de altura, que inclusive senta no banco de reservas em todos os jogos.

Futebol nas HQs brasileiras

O Brasil, como país do futebol, tem vários outros exemplos dessa bem-sucedida união entre dois dos melhores entretenimentos que existem. Já em 1932, os moleques Reco-Reco, Bolão e Azeitona, criações de Luis Sá, apareciam batendo uma bolinha.


A Turma do Pererê, criação de Ziraldo, gostava tanto de futebol que chegou a organizar um torneio na mata. E um inesquecível registro dessa paixão aconteceu em 1962, meses antes de o Brasil conquistar o bicampeonato mundial no Chile. Era uma história que mostrava um dos membros da turma desfilando seu talento nos gramados, e sendo convocado para a seleção que disputaria a Copa naquele ano. Tudo isso pode ser visto no primeiro volume da coleção Todo Pererê, que a Editora Salamandralançou em 2002 e cujo terceiro número saiu em agosto de 2004.

Em 1978, o gibi Sítio do Picapau Amarelo # 13 (RGE) mostrou outro personagem convocado para a Copa. Tia Nastácia foi convidada a fazer parte da delegação do Brasil, para preparar deliciosos quitutes para os jogadores.


Nossa seleção, aliás, tem um grande número de aparições nos quadrinhos, em diferentes épocas, principalmente em lançamentos próximos a alguma Copa do Mundo. Sócrates, Zico, Falcão, Careca, Bebeto, Romário, Taffarel, Ronaldinho e muitos outros (que incluíam os técnicos Cláudio Coutinho, Telê Santana e Lazzaroni) apareceram em gibis do Sítio do Picapau Amarelo, Cebolinha, Zé Carioca e Pelezinho, em 1978, 1982, 1986, 1990 e 1994.

E só mesmo no país pentacampeão do mundo são mais do que comuns as coletâneas especiais sobre o esporte, pinçadas de uma variedade enorme de histórias dos mais diferentes personagens, como os da Disney (em edições de Zé Carioca relacionadas a Copas e no Disney Especial), Turma da Mônica (Pelezinho, também em edições alusivas aos mundiais e na Coleção Um Tema Só: Futebol), entre outros.


Em gibis como Cebolinha, Cascão, Os Trapalhões (tanto na Bloch quanto na Abril) e O Gordo, passando por Menino Maluquinho, Alegria, Turma do Lambe-Lambee tosqueiras como Sérgio Mallandro, o futebol sempre deu um jeitinho de pintar nas histórias produzidas aqui. Até mesmo Senninha, um piloto de Fórmula 1, participava de peladas com sua turma.

Há outras criações tupiniquins que também amam o futebol, como Maciota, o jogador de várzea criado por Paulo Paiva; a garotinha Mutuca, de Antônio Cedraz (criador da Turma do Xaxado); a tira O Dia a Dia do Futebol, de Bruno Teixeira Lomba; o cão Jarbas, que às vezes veste a camisa da seleção ou se traja de árbitro; e o travesso Cabeça Oca, cuja roupa vermelha e branca é uma homenagem ao Vila Nova, clube para o qual torce o criador do personagem, o goiano Christie Queiroz.


E não se pode esquecer de Futebol e Raça, publicado pela Cedibra, que durou apenas três edições. Com textos de Luiz Antônio Aguiar e desenhos de Mozart Couto, as histórias tinham como protagonista um jogador aposentado.

Mesmo quando algum personagem vinha dos Estados Unidos - país conhecidamente avesso ao futebol -, os autores brasileiros tratavam de fazê-lo apreciar o esporte. Nas histórias da Pantera Cor-de-Rosa, Luluzinha, Bolinha ou algumas da Hanna-Barbera produzidas aqui, era possível encontrar pelo menos a tradicional bola de gomos pretos e brancos compondo cenários de lojas de brinquedos ou quartos de criança. Coisa que não se via nas aventuras importadas.

Em O grande jogo, história produzida nos estúdios da Editora Abrile publicada na revista Pato Donald # 1252, foram reunidos vários vilões como João Bafo-de-Onça, Dr. Estigma e Irmãos Metralha em torno de uma disputa futebolística num presídio. O melhor ficou para o final, quando todos organizaram uma partida de futebol de botão, uma invenção genuinamente brasileira.


Zé Carioca, por sua vez, joga bola com muita freqüência, desde suas primeiras histórias produzidas no Brasil. Mais ainda depois que surgiu o Vila Xurupita F.C., criado por Ivan Saidenberg na década de 1970. O time punha em campo, além do papagaio, os pernas-de-pau Nestor, Afonsinho, Pedrão e outros "grossos".

Praticamente uma versão em quadrinhos do Íbis (time pernambucano que é considerado o pior do mundo), o Vila Xurupita é o maior saco de pancadas da história do futebol. Na única vez em que ganhou um troféu (disputado num jogo só, contra uma equipe formada por gorilas mal-encarados, vencido devido a um gol contra), foi obrigado a vender o prêmio para pagar os aluguéis atrasados da sede do clube.

O time alimenta ainda uma rivalidade ferrenha com o Arranca-Toco. Os jogos entre as duas equipes são o que se pode chamar de (com o perdão do trocadilho) clássico dos quadrinhos.


Como todo brasileiro que se preza, o papagaio malandro é fanático por futebol, e essa paixão foi - e continua sendo - parte marcante do gibi do personagem. Seja em menções a clubes, jogos na calçada ou "furadas de fila" no Maracanã, a revista sempre destacou o esporte bretão.

E numa dessas, foi concebida a melhor saga futebolística do Zé Carioca, a divertida Zé nos States, escrita por Gérson B. Teixeira e desenhada por Aluir Amâncio. O arco completo de histórias foi publicado na edição número 2000 da revista do personagem, e se passava na época da Copa do Mundo 94.

A aventura narrava a ida de Zé Carioca aos Estados Unidos para assistir aos jogos do Brasil. É claro que, para chegar lá sem um tostão no bolso o malandro apronta de tudo para alcançar seu intento. Uma das melhores passagens é o encontro dele com o craque Maradona num navio de passageiros. A rivalidade entre brasileiros e argentinos foi o mote para as mais divertidas confusões. O jogador, claro, sofreu nas mãos do papagaio.


Não mais que um marinheiro argentino, que não resistiu e cantou Aquarela do Brasil junto com o Zé Carioca. Acabou sendo expulso do navio pelos próprios compatriotas, que gritavam "Traidor!" a pelos pulmões.

Para quem não teve a oportunidade de ler essa fantástica saga há dez anos, a Editora Abril a republicou em 2004 no título quinzenal do Zé Carioca.

Mas essa não foi a primeira vez que o papagaio assistiu in-loco aos jogos do Brasil nas Copas. Em muitas ocasiões, ele tanto fazia que acabava integrando a delegação nacional. Como em 1986, na revista Zé Carioca # 1775, em que o malandro até ensina ao técnico Telê Santana um novo posicionamento tático, baseado no famoso "carrossel holandês": a gangorra tupiniquim.

Antes disso, em 1982, ele foi com Donald e Panchito à Espanha. E em 1998, lá estava o caloteiro na França, no especial Copa 98.


Tantas histórias ligadas ao futebol na revista do papagaio caloteiro provavelmente não se originavam apenas do apelo comercial que o esporte possui, mas também porque a turma da Redação Disney da Editora Abril era adepta de uma pelada semanal nos anos 80.

Os quadrinhistas alugavam uma quadra na sede do Corpo de Bombeiros, em São Paulo, e os jogos rendiam inspiração não só para engraçadíssimas HQs, como para impagáveis charges sobre a Redação, nas quais um dos alvos preferidos era o rechonchudo arte-finalista Acácio Ramos.

Até hoje (2004) o argumentista Gérson B. Teixeira (atualmente trabalhando nos Estúdios Mauricio de Sousa) guarda esses desenhos, uma recordação dos bons tempos da produção nacional de quadrinhos Disney.


Falando em charges, grandes nomes da área não perdem a oportunidade de brincar um pouco com o futebol. Laerte, Glauco, Luís Fernando Veríssimo e muitos outros têm em seu portfólio diversos trabalhos sobre o tema.

E aqui mesmo no UHQ o leitor pode se deliciar com divertidas charges que colocam famosos personagens dos quadrinhos (Demolidor, Thor, Wolverine, etc.) no mundo da bola, destacando-se as que antecederam a Copa de 2002.


Com relação a outro sucesso e orgulho nacional, a Turma da Mônica, seus gibis talvez são uma das poucas HQs nas quais os personagens torcem por um time de verdade. Não se trata de uma história isolada em que alguém revelou seu clube do coração. É algo já consolidado em diversas aventuras. Efetivamente, o Cascão é fanático pelo Corinthians, o Cebolinha torce pelo Palmeiras, o Anjinho é santista (nada mais lógico!) e por aí vai.

Em 2002, Mauricio de Sousa anunciou que transformaria o jogador Ronaldo (sim, ele mesmo, o Fenômeno) em mais um de seus personagens. Foi até divulgado um desenho do craque ao lado de Mônica e Cascão.


Marcelinho Carioca, o polêmico ex-atacante do Corinthians, por pouco também não virou personagem de quadrinhos. Em 2001 ele lançou o Pé de Anjo, que só não foi para os gibis (ou para qualquer outro lugar) porque, na época, o jogador estava em crise com os torcedores.

Outro que não emplacou e acabou cedo foi o título Coringuinhas. Lançado em 2003, numa parceria entre o Corinthians e a Publishouse, o gibi tinha como atração os jogadores mirins da escolinha do clube paulista, entre eles o craque Alvinho.


A equipe criativa contava com Caco Machado (roteiros), George Tutumi (desenhos), Roberto Souza (arte-final) e o saudoso Hermes Tadeu (cores). Em 1998, a Editora Abril lançou o especial de luxo Linha de ataque: Futebol Arte. Com textos dos comentaristas esportivos Armando Nogueira, José Trajano, Marcelo Fromer (que também era guitarrista da banda Titãs e faleceu há poucos anos) e Casagrande, mais os desenhos de Marcelo Campos, Octavio Cariello, Rogério Vilela e Roger Cruz, foi um dos exemplos mais significativos da junção do futebol com a nona arte. Mas não foi nenhuma obra-prima do gênero, é preciso dizer.

Outra produção sobre o tema foi lançada em 2002. Trata-se de Dez na área, um na banheira e ninguém no gol. O álbum, publicado pela Via Lettera, apresentou 11 histórias produzidas pelos craques dos quadrinhos Fábio Moon, Gabriel Bá, Allan Sieber, Custódio, Fábio Zimbres, Lélis, Leonardo, Osvaldo Pavanelli, Emílio Damiani, Spacca, Samuel Casal, Maringoni e Caco Galhardo. E ainda teve um prefácio do ex-jogador Tostão.


E em 2004 saiu pela Editora Bom texto, o espetacular A História do Futebol no Brasil através do Cartum, livro organizado pela dupla Jal e Gual que rende uma homenagem ao mais apaixonante dos esportes e à memória do traço nacional. São 340 ilustrações de várias épocas.

Para os que não puderem adquirir nenhuma dessas edições, e que desejam ler alguma HQ sobre futebol, a opção é acessar o site da Nona Arte, sempre rico em quadrinhos de vários estilos. Lá se encontra disponível para download a excelente Dia de decisão, produzida por Arthur Ferraz, Daniel Brandão e Denilson Albano.








A série completa você pode acessar nos links abaixo:


Sobre Marcus Ramone:

Cearense radicado em Alagoas, o marketista e jornalista Marcus Ramone é flamenguista "flanático" e editor do site Universo HQ. Foi articulista da extinta revista Flashback (Editora Abril) e da Crash (Escala), colabora com jornais e revistas de várias partes do Brasil e é diretor de marketing de uma rede de óticas do Nordeste.

40 anos sem Almir Pernambuquinho

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Literatura na Arquibancada apresenta agora uma pequena série sobre Almir Morais de Albuquerque, que ficou famoso como Almir Pernambuquinho, um dos mais polêmicos jogadores do futebol brasileiro que morreu tragicamente assassinado, por um grupo de portugueses, no bar “Rio Jerez”, em frente à Galeria Alaska, em Ipanema. Almir se envolveu em uma discussão e acabou morto a tiro. Ele nasceu em Pernambuco, no dia 28 de outubro de 1937 e morreu no dia 6 de fevereiro de 1973 com apenas 36 anos de idade. Jogou em grandes equipes do Brasil (Sport Recife, Vasco, Santos, Corinthians, Flamengo, América do RJ), e do exterior (Boca Juniors, da Argentina, Genoa, da Itália) e chegou a ser chamado de “Pelé branco”, porque utilizou a camisa 10 do rei do futebol, quando Pelé ainda jogava pelo Santos.


Almir ganhou fama de valente, catimbeiro e brigão. No livro autobiográfico Eu e o Futebol, confirma não apenas esses adjetivos como também, logo em seu primeiro capítulo, afirma que iria contar a história de um “marginal do futebol”. O depoimento de Almir foi um dos mais contundentes na história do futebol brasileiro. Parecido com ele, somente o de Floriano, no início da década de 1930 com o seu Grandezas e Misérias do Futebol Brasileiro. Almir não poupou ninguém. Falou abertamente sobre doping (que ele mesmo teria se submetido várias vezes), compra de juízes e vários outros “podres” dos bastidores do mundo da bola. Não poupou nem mesmo a equipe mais famosa do planeta, da qual fez parte, o fantástico Santos campeão mundial interclubes.


O livro lançado em 1973, pelo selo Biblioteca Esportiva Placar, na verdade, foi uma coletânea de artigos lançados na revista, fruto do depoimento dado por Almir aos jornalistas Fausto Neto e Maurício Azedo. O livro é um documento histórico, encontrado somente em sebos. Neste primeiro post, o prefácio assinado pelo jornalista e amigo pessoal de Almir, Fausto Neto. Um relato que dá toda a dimensão do personagem Almir, dentro e fora dos gramados. Sua trajetória e final trágico.

Uma amizade da estrada dos Remédios a Copacabana
Por Fausto Neto


Parece que o vejo, menino ainda, com a farda do Colégio Americano Batista ou nas peladas da estrada dos Remédios. O corpo franzino e as canelas finas pareciam feitos de ferro. Já naquele tempo Almir não levava desaforo pra casa. Pancada em futebol, mesmo de marmanjo, não ficava sem resposta.

Almir começava uma carreira de craque nos juvenis do Sport Club Recife. Eu, um foca, fazia a resenha dos jogos do campeonato para um jornal e uma emissora de rádio. Assim, estreitamos uma amizade que, logo, logo, seria interrompida por alguns anos.

Seu futebol era grande demais para a província. E, além disso, ainda estava viva a escrita, no Recife e no Rio, de que todo ponta-de-lança bom no Sport tinha um destino: o Vasco. Pelo menos para o empresário Cier Barbosa, que contava nos dedos a sucessão de estrelas, e essa verdade era o bastante para uma nova tentativa.

O primeiro foi Ademir Meneses, uma transação caríssima na época, feita através do próprio pai, o velho Antonio Meneses, o Muriçoca. Depois, Vavá, que Cier mandara direto também dos juvenis. Entre um e outro, um terceiro pernambucano, Amorim, brilhou rapidamente, mas acabou no Palmeiras.


Mais cedo que Ademir e Vavá, Almir se transformou num ídolo. Um ídolo diferente, que superava os limites de sua torcida, a do Vasco, para ser o jogador festejado de todas as torcidas, pela valentia e catimba com que se impunha aos adversários mais fortes, mais experientes.

Saldanha diz com precisão que ele exerceu um papel muito importante no comportamento do jogador brasileiro em competições internacionais. E lembra que, com a coragem dele e de Paulo Valentim, num jogo histórico em Buenos Aires, a imagem do jogador comportado, ou covarde, que aceitava tudo, deixou de existir. A partir de então, o Brasil começou a impor a força de seu futebol, fossem quais fossem as tendências do inimigo: na bola ou no pau.

Dividindo a coragem e a violência, um sujeito temperamental. Que podia romper uma amizade, mesmo antiga, bruscamente, se desconfiasse da fidelidade ou do caráter do amigo. Mas era, antes de tudo, um respeitador. E quando cedia aos argumentos de um fisicamente mais fraco que ele, baixava a cabeça, antes de comentar e aceitar o que lhe era imposto: “É...eu te respeito”.

Almir, na decisão entre Flamengo e Bangu.

Entre o juvenil do Sport e a última batalha campal no América – brigou com todo o time do Olaria, em Bonsucesso, no campo e depois na rua -, Almir teve uma vida de aventuras. Uma vida que ele próprio muitas vezes admitiu como “maravilhosa, que muito rico jamais conseguirá gozar igualmente”.

Casou, teve filhos, correu mundo, ganhou títulos, enriqueceu e ficou famoso. Em todos os clubes por onde passou eternizou seu nome com episódios notáveis. Sua personalidade e desassombro não tiveram limites: foi o mesmo Almir no Vasco, no Corinthians, no Boca, no Fiorentina, no Genova, no Santos, no Flamengo e no América.

Almir, no Corinthians.

Depois que a estrela de craque deixou de brilhar, e ele começou a ser visto com o respeito e a admiração dos que já não viam nos campos um jogador tão valente e dedicado, nossa amizade voltou a se estreitar novamente. Aí ele já estava desobrigado dos treinamentos, das concentrações, das viagens, dos jogos.

- Agora estou como quero – me disse, mais de uma vez, enquanto tomava seus aperitivos diários no bar do Quincas, na Constante Ramos, em Copacabana, Rio. Quase todas as semanas, pelo menos uma vez estávamos juntos. Eu, ele, o Motor, o Nei, o Russo, o falecido Perereca, o Pedrinho, o Dario. Ou no bar ou no seu apartamento, na rua Dias da Rocha, que era também uma espécie de refúgio de conterrâneos. Onde a mesa era sempre farta, com o próprio Almir preparando uma comidinha nordestina.

O mundo ficou pequeno para ele depois que as pernas pararam de correr atrás da bola nos campos. Sempre de bermuda, sandália e camisa esporte, não tinha muitas opções. Bebia no bar e em casa. Ia a um cinema de vez em quando. Às vezes, dava um pulo à Barra da Tijuca para comprar goiamuns e siris, que preparava como ninguém.

O futevôlei no posto 6 ou um jogo no Maracanã, e assim mesmo quando o Santos vinha ao Rio com o Pelé, eram as outras alternativas. Não gostava de sair à noite. Era desconfiado e visado. Detestava ser identificado como ex-jogador e muitas vezes chegou a ser grosseiro com os estranhos que insistiam em lhe pagar uma bebida. Depois das 10, era quase impossível tirá-lo de casa. Mas o destino seria cruel com Almir. E ele acabou morrendo de madrugada, num bar que pouco freqüentava, desarmado como sempre andou, nas mãos de dois bandidos.


Meses antes de morrer, ele me confessou várias vezes a sua preocupação com a ociosidade. “É o diabo”, repetia “eu não sei fazer nada”. Tinha esperanças de voltar ao futebol como técnico ou auxiliar. Mostrava-se esperançoso no sucesso de Dida, aquele ponta-de-lança famoso do Flamengo no tricampeonato de 53/54/55. “Se o Dida acertar o pé, vou pra lá como auxiliar dele. Depois, o resto é por minha conta. Conheço tudo de futebol”.

A renda mensal dos imóveis já era pequena para as despesas. Nos últimos anos, vendera alguma coisa. Mas o dinheiro chegava e sumia com a mesma facilidade. Não sabia negar uma ajuda a um amigo ou a um necessitado, mesmo estranho. De resto, uma simplicidade que contrastava com a vida agitada e fascinante do corre-mundo.

Quando Placar publicava os últimos capítulos da vida de Pelé, ele me chamou um dia e comentou: “Olha, mago, o negão tem muita coisa a dizer, mas não pode fazê-lo agora. Ele ainda está jogando. Você entende, é uma questão de ética. Se ele abrir a boca agora, vai ser um Deus nos acuda. Você vai ver só no dia em que ele puder falar”.

Estranhei a observação. Meio acanhado, advertindo que aquilo não era uma crítica ao Pelé, Almir propôs contar não somente a sua vida, mas tudo o que vira nos bastidores do futebol. Conversamos sobre o assunto em outras ocasiões. Lembrei repetidas vezes que aquilo era um negócio muito sério, a julgar pelas coisas que ele me contava e que o grande público não conhecia. Nem eu mesmo, como jornalista.

- Olha, mago, digo e assino.

Assim, surgiu o livro de Almir. Foi um trabalho árduo, paciente. Durante quase três meses eu e Maurício Azêdo estabelecemos intervalos para esclarecer detalhes sobre datas, nomes e números. Ele gravou um depoimento que pode ser considerado o mais importante até hoje feito por um jogador, pela sua essência. São denúncias que expõem os crimes e os dramas cometidos contra o jogador e que se escondem sob a alegria e a falsa euforia do futebol profissional.

Quando Almir foi assassinado, a maioria dos capítulos já havia sido publicada. E todo o trabalho estava concluído. Durante essa fase, houve contestações e avais aos depoimentos. Aplausos e críticas. Mas a maioria preferiu o silêncio, porque Almir não omitiu nomes e sempre se mostrou disposto a enfrentar os contestadores.

                                                           ***


O dia estava amanhecendo quando o telefone tocou na minha casa. Minha mulher atendeu e voltou sobressaltada:

- Que desgraça. Mataram o Almir.

Dei um pulo da cama. Segurei-a pelos braços: “Você está brincando”. Levantei-me como um louco, admitindo que a notícia era um trote. Brincadeira de mau gosto de algum desocupado, àquela hora da madrugada.

Mas era tudo verdade. Estendido no calçadão da avenida Atlântica, Almir tinha a face tranqüila de quem não guardava ódio. Horas depois, nos encontramos, eu, o Ademir, o Vavá e o Adésio, seus conterrâneos, para cuidar do enterro. A Fugap financiou tudo; Gilbert, outro ex-jogador, e então presidente da entidade, foi de uma presteza fora do comum.

Às 10 horas do dia 7 de fevereiro, três gerações do futebol brasileiro e um grupo numero de amigos levavam Almir para o túmulo. Perdido em meio à multidão, Almirzito, seu filho mais velho, tinha a reação de um adulto. “Eu quero ser meu pai”, disse para quase todos os que procuravam confortá-lo.

A caminho do canteiro 229, do Cemitério São João Batista, no Rio, na ala que dá para a rua Real Grandea, só se ouviam soluços, cortados somente no momento em que sua mãe, dona Dedé, desabafou: “Para que tanta glória? Eu preferia meu filho desconhecido e pobre, mas vivo”.

                                                          ******




Paulo Luna: No compasso da bola

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Música e Futebol. Futebol e Música. A tabelinha perfeita na literatura esportiva nas mãos de um craque. Paulo Luna escreveu o que se pode definir como “joia rara”. “No compasso da bola” (Irmãos Vitale Editores, 2011) é leitura obrigatória para os amantes da bola e da música. Uma pesquisa histórica espetacular, feita com paciência e detalhamento necessários para se transformar em livro.  

Literatura na Arquibancada destaca abaixo a apresentação do autor e o prefácio da obra feito pelo presidente do Instituto Cultural Cravo Albin, Ricardo Albin. Outros trechos da obra podem ser acessados também pelo link http://www.vitale.com.br/sistema/produtos/produto.asp?codigo=36369

Apresentação
Por Paulo Luna

Arte Luciana Mello e Monika Mayer
  
“É missão das histórias selecionar e é de sua natureza incluir excluindo, e iluminar lançando sombras. É um grave equívoco, além de uma injustiça, culpar as histórias por favorecerem uma parte do palco e negligenciarem outra. Sem seleção não haveria história”. (Zygmunt Bauman).

Esporte e arte. Som e movimento. Futebol e música. Consagração do instante em momento mágico. O futebol e a música se aproximam na graça do movimento. A música leva à dança e o futebol é um jogo que propicia o acontecer de um balé no campo. Ondulações cintilantes que extasiam. Em sua curta trajetória no planeta Terra, a espécie humana tem perpetrado mistérios variados. Fome, guerra, exclusão e miséria são situações que exploram as mais altas consciências na tentativa de descobrir os seus porquês. Por outro lado, a espécie humana é a mesma capaz de produzir as coisas mais espetaculares, as obras mais fantásticas. Num exercício de imaginação, digamos que daqui a cem mil anos a vida humana já tenha sido extirpada do planeta e alguma espécie de outro sistema solar aqui chegar e, tendo a capacidade do raciocínio e da compreensão tal qual a conhecemos, encontre entre destroços algumas partituras musicais, alguns velhos discos ou CDs e, quem sabe, imagens de jogos de futebol. Que impressão levaria da extinta raça que habitara o belo planeta azul? Talvez rissem, talvez chorassem ou, quem sabe, levassem de volta a seu planeta natal amostras desse enigmático povo capaz de matar e criar belezas em proporções semelhantes.

A música popular, tal qual a concebemos hoje, e o futebol são fenômenos que possuem certa contemporaneidade, pois são fruto da série de transformações ocorridas, primeiramente, em várias sociedades europeias e, posteriormente, espalhadas pelo mundo, a partir da chamada Revolução Industrial. Assim, embora existindo desde remotas eras como parte de práticas rituais religiosas e profanas, a música popular ganhou impulso com o desenvolvimento das cidades e suas variadas formas de diversão e maneiras de se ganhar a subsistência diária.


No Brasil não foi diferente o processo, mas sim o resultado dessas transformações, uma vez que em nossa terra variados fatores quase nunca pacíficos terminaram por propiciar uma mistura, um mestiçamento tal, que as forças criadoras de negros, brancos e indígenas se amalgamaram para criar possibilidades novas que continuam a intrigar os mais conceituados estudiosos. E essa força nova, criativa, se fez presente de forma avassaladora na música popular e no futebol, campos em que, por diferenciados aspectos, foi possível mais rapidamente aos mestiços e negros romperem barreiras, o que em outros campos da sociedade brasileira permaneceram intransponíveis.

Este livro se dedica a estabelecer um paralelo, observar as sincronicidades, as convergências e divergências entre a música popular e o futebol no Brasil. Como ocorre com todo o trabalho de pesquisa na área da cultura não se pode reivindicar nenhum ineditismo ao tema, mas sim reconhecer os trabalhos pioneiros sobre este. Porém, o pesquisador que se debruça sobre o estudo da cultura, ainda mais em um imenso mosaico que não permite conclusões definitivas, nem superlativas. As maneiras de jogar e de fazer música no Brasil possuem, inevitavelmente, as tonalidades locais, regionais, assim como a maneira de olhar sobre cada uma dessas duas facetas aqui investigadas.

Este trabalho teve início com uma observação sobre a grande quantidade de canções existentes no repertório de variados artistas que evocam o futebol. Evidente que tal observação em si nada tem de original, mas possibilitou o ponto de partida para a busca da ampliação desse campo investigativo para um pouco além do trivial, ou classicamente já conhecido, e buscar resgatar outras criações e relações sobre a temática do futebol ainda não devidamente investigadas.


Logo, foi possível ampliar gradativamente nosso campo investigativo, o que possibilitou a listagem de mais de 300 composições tendo o futebol como tema ou por ele passando de forma incidental. Não consideramos, evidentemente, que a pesquisa factual esteja encerrada, pois se assim estivesse, estaríamos contradizendo nossas palavras iniciais. Por estarmos no Rio de Janeiro, ainda guardamos resquícios do passado e temos a mania de ver a cidade maravilhosa como o centro civilizador do Brasil, o que impede uma melhor observação sobre os fenômenos culturais das demais regiões do país. Apenas como exemplo: músicas tendo como referência o Rio de Janeiro são entendidas por muitos como se fossem músicas nacionais, enquanto as variadas musicalidades de outros estados são tidas genericamente como regionais.

Evidente que as dimensões continentais do nosso país, o avassalador volume de produção cultural, bem como o precário estado de guarda de boa parte desse acervo impedem qualquer tentativa de buscar uma investigação definitiva. Não pretendemos, por certo, realizar tal tarefa e conhecemos, de antemão, muitas de nossas lacunas. Buscamos traçar, porém, uma radiografia das relações entre a música popular e o futebol no Brasil, procurando seus pontos de encontro e recortes comuns. Não tivemos nenhuma preocupação estética que guiasse nossa investigação em torno de criações mais ou menos elevadas musicalmente. Deixamos essa tarefa a quem dela quiser se ocupar. Escalamos nosso time e o pusemos em campo, ou melhor, em pauta para atuar e esperamos que o concerto possa servir de inspiração a outros investigadores que, a partir do nosso levantamento, deem continuidade a pesquisa e cheguem a novas conclusões. Na música, as notas musicais se volatizam no ar e se dissolvem no ato da audição. No futebol, o gol (momento maior desse esporte) é uma quimera que se dissolve no olhar e no grito de alegria ou de dor de quem o vê. Músicas ficam registradas em discos, CDs e outras formas mais modernas de registro, enquanto o futebol se eterniza em filmes e videoteipes, mas ambas as artes, a música e o futebol, se notabilizaram por lidarem com o efêmero e é desse sutil equilíbrio que essas artes possibilitam o surgimento daquilo que possuem de mais belo, genial e duradouro.


Foram cerca de dez anos de pesquisa, em parte de forma sistemática e dirigida e, por outro lado, contando com a sorte e com o modo aleatório. A tarefa foi realizada em arquivos particulares, bibliotecas, livros e sites sobre música em geral, além do nosso acervo particular de LPs e CDs, e, naturalmente, no respeitado conjunto de informações sobre o assunto constituído pelo Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira, o qual conta com nossa participação na equipe de pesquisa.

Para se descobrir a grande quantidade de músicas aqui listadas foram necessárias inúmeras audições, isso sem falar no acaso que, muitas vezes, colocou diante dos nossos olhos LPs ou CDs que continham alguma música de acordo com o tema da pesquisa. Isso sem mencionar ainda toda a nossa experiência de anos a fio frequentando as arquibancadas do Maracanã (Estádio Mário Filho), do Estádio Mané Garrincha, do Caio Martins, da Arena Ilha do Governador e, finalmente, do Engenhão (Estádio Olímpico João Havelange). Creio que avançamos um pouco no tema, embora muito ainda tenha ficado de fora; algumas coisas por não caberem nas nossas possibilidades temporais e outras porque não conseguimos chegar até elas, e porque tínhamos, por força da própria caminhada, que chegar a um ponto final.

Como bem explicitado na epígrafe deste livro, esta é uma história e como toda história, ela foi criada a partir de uma seleção que clareou alguns pontos e deixou outros obscurecidos, em que, afinal de contas, não seria possível fazer diferente. Que a magia das vozes, das mãos e dos pés possa falar mais alto nessa dança.

Prefácio
Por Ricardo Cravo Albin


São duas – e muito claramente aceitas, reconhecidas e apregoadas – as paixões do brasileiro.
Nem há como discutir sobre a verdade consolidada que defere à música e ao futebol as preferências nacionais. Preferências, paixões? Mais que isso: são uma e outra, por isso mesmo, as consolidações mais afetuosas da alma deste país, miscigênico, inquieto e criativo. Até porque música e futebol redefinem e colocam nosso temperamento nacional no seu devido lugar sociológico, embora aqui ou acolá narizes retorcidos (de intelectuais metidos a besta, que sempre os há...) tentem em vão apregoar o oposto, negando-lhe sua grandeza e colocando o dedo sujo nas feridas dos preconceitos.

O pesquisador Paulo Luna – que já por dez anos presta serviços acadêmicos ao nosso Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira, online (e em papel desde 2006) – apresenta neste livro uma das mais bem cuidadas sínteses do relacionamento das duas vertentes. Ambas são historicamente frutos de preconceitos e do pouco apreço das elites pela miscigenação deste país. Elas – a música e o futebol – são vistas por Paulo Luna com olhar fraterno, até piedoso, mas não menos categórico, aprofundado e rigoroso. No que ele faz muitíssimo bem. E no que não decepciona – muito antes pelo contrário – este seu velho orientador.

Paulo faz ambas as paixões percorrerem caminhos conjuntos, convergentes e intensamente interligados. Desse modo, o leitor – aficionado ou não por futebol ou música (existe, de fato, no Brasil quem não seja ao menos por um deles?) – se encantará com as conexões entre eles. Que em determinado momento passam a redefinir a argamassa da quintessência da brasilidade.


Claro que música e futebol não têm a mesma idade. Nossa MPB se maturou lentamente, forjada pela miscigenação desde o século XIX. Já o futebol se instala no Brasil basicamente a partir das fraldas do século posterior, o XX.

Mas ambos convergem, e se depuram, a partir de um inimigo comum que tentou ir contra a essência do melhor deles e que sempre foi o exercício da liberdade: o preconceito, especialmente o mais abominável entre todos, o racial.

Paulo Luna investiga fragmentos preciosos, especialmente aqueles escritos por Ruy Barbosa vociferando contra a “ignomínia” de a primeira-dama do país, dona Nair de Teffé (esposa do marechal Hermes da Fonseca), adentrar com o “Corta jaca”, de Chiquinha Gonzaga, nos salões do Palácio do Catete.

Quase ao mesmo tempo, aliás, o célebre “conselheiro da República” brame indignação pela possibilidade de ter que viajar no mesmo “vapor” a Buenos Aires com a nossa delegação de futebol, que disputaria o histórico “Primeiro Campeonato Sul-Americano de Seleções” (julho de 1916).


Em resposta ao ministro do Exterior Lauro Müller – episódio citado por Lóris Baena em A verdadeira história do futebol brasileiro, pp. 56-57 – irrompe Ruy: “Saiba o Senhor que eu, minha família e meus auxiliares não viajamos com essa corja de malandros. Futebol é sinônimo de vagabundos. E pode escolher, Senhor Ministro, ou eles ou eu!”.

A identidade nacional, mesmo em suas origens ofendida por preconceitos tolos e desparafusados, é uma construção alegórica, forjada a partir do imaginário coletivo e sedimentar. Por isso, poucos países do mundo ostentam tamanhas conexões entre sua música popular e seu futebol, origens da nossa ascensão miscigênica, que define a criatividade, a ginga dos dribles num estádio ou a manemolência do samba, quando não os desafios improvisados num choro.

Aliás, outro belo fragmento recolhido por Luna nos capítulos iniciais é o de Gilberto Freire, que ao escrever a introdução de O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho, testemunha: “A capoeiragem e o samba, por exemplo, estão presentes de tal forma no estilo de jogar futebol [...] que foram com esses resíduos que o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado futebol britânico, para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é”.

Esse amontoado de qualidades de essência anímica que compreende ligeireza, improvisação, manha, ginga, exacerbações individuais (fugindo do coletivismo frio da Europa) – além de astúcia e malandragem – liga os jogadores de futebol do Brasil aos executantes da MPB.
Este livro – em capítulos convenientes e muito originais – destila toda a adesão da música popular ao seu irmão mais novo, o futebol, década a década do século XX. Desde o primeiro registro histórico que remeteu diretamente ao tema futebol, como a marcha “Foot-ball” (ainda com a grafia inglesa), de Francisco de Oliveira Lima, gravada para a Odeon Talking Machine pelo Grupo Lima Vieira e Cia., até ao primeiro hino para um clube carioca, o do Fluminense Football Club, escrito por Oswaldo Cardoso de Menezes (pai da pianista Carolina Cardoso de Menezes) e que também foi o maestro do célebre Rancho Carnavalesco Kananga do Japão.

Partitura de 1x0, Pixinguinha.

Paulo perfila com maestria o desabrochar da adesão factual da MPB ao futebol, ao começo dos anos 20, partindo do Campeonato Sul-Americano de Futebol no Rio (campo do Fluminense).

E traz de volta pepitas como o one step de Eduardo Souto “Sul-Americano”, com letra de uma misteriosa Mlle. Tell: “Filhos da Terra do Sol / Lutemos até morrer / Que o Brasil, nosso país / Há de vencer”. A que logo se seguiu o choro clássico de Pixinguinha “1 x 0” (composto logo depois da vitória contra o Uruguai) e também o Tango “El rey de la pelota”, do citado Oswaldo Cardoso de Menezes, em honra a Friedenreich, o primeiro craque homenageado individualmente pela MPB.

Não há dúvida que – ao ler o livro e desfiando cada década com prazer – revi meu desabrochar para o mundo e, eu tricolor doente, pude sentir – um pouco a contragosto – a força do Flamengo como centro preponderante de paixões. Eu próprio cantarolei sambas de Wilson Batista, como aquele que ainda hoje guardo de cor: “Flamengo joga amanhã / Eu vou pra lá / Vai haver mais um baile no Maracanã / O Favorito tem Ruben, Dequinha e Pavão / Eu vou rezar pra São Jorge / Pro Mengo ser campeão...”. Depois, como não deixar de aqui me referir ao encantador, especialmente para mim, samba do Chico Buarque “Receita pra virar casaca de neném”, espertíssima resposta musical do tricolor Chico a seu amigo rubro-negro Cyro Monteiro (o grande cantor) que enviara um perigoso presente a sua primogênita recém-nascida (Silvia): uma camisa do Flamengo.


Berço – todas essas evocações musicais perfiladas na pesquisa de Paulo Luna – do mais aceso grito da paixão pelo futebol na “Terra do samba e do futebol”. Aquele do Miguel Gustavo que projetava – e nem a hora política de tantas dúvidas e desencontros conseguiu inutilizar – o grito de esperança para a conquista do tricampeonato em 1970: “Oitenta milhões em ação / Pra frente Brasil / Do meu coração”.

Selo definitivo, malgré tout, da congregação das duas cristalinas paixões brasileiras: sua música e seu futebol.



Sobre Paulo Luna:

Pesquisador. Professor. Historiador. Poeta. Licenciado em História em 1987, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ.
(acessar o perfil completo na página do autor em http://www.pauloluna.net/perfil.php)
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